Apesar de diferentes pesquisas científicas comprovarem que soropositivos com carga viral indetectável são incapazes de transmitir o HIV aos parceiros sexuais, não existe ainda um consenso entre os médicos brasileiros. Enquanto alguns se baseiam nesses estudos para orientar os pacientes, outros adotam uma postura mais reticente.
O médico infectologista Jan Walter Stegmann, que trabalha no Centro de Testagem e Aconselhamento (CTA) de Londrina, não concorda com a declaração de que indetectáveis não transmitem o vírus. Para ele, o fato de o paciente ter carga viral indetectável no sangue não garante que as secreções sexuais também tenham carga viral indetectável, o que possibilitaria transmissões por via sexual. "Não há ‘nunca’ e ‘sempre’ na medicina", afirmou.
Para o infectologista Arilson Morimoto, existe um risco teórico de transmissão na relação desprotegida entre casais sorodiferentes nos quais o parceiro que vive com HIV tem carga viral indetectável. Diferentemente de Jan, ele assegurou que, se a carga viral é indetectável no sangue, também será no sêmen, por exemplo. No entanto, o fato de existir cópias do vírus nesses materiais, por menos numerosas que sejam, delimita um risco.
"Em 1 mililitro de sêmen, você terá uma quantidade pequena de vírus e provavelmente não conseguirá transmiti-lo. É a mesma coisa se eu jogar uma semente no chão: qual é a probabilidade de ela germinar? É uma possibilidade remota, mas existe", comparou.
Jan também mencionou os escapes virais como uma incógnita das pesquisas científicas. Os escapes são flutuações da carga viral que podem acontecer a qualquer paciente e não significam que há, necessariamente, falha terapêutica. Assim, o soropositivo indetectável pode se tornar detectável devido ao escape, mas, se não houver um problema no tratamento, ele voltará a ser indetectável pouco tempo depois. "Como pode haver um escape, a pessoa pode não ser sempre indetectável."
Carué Contreras, médico sanitarista e membro da Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV/Aids (RNP+), rebateu essa posição. Segundo ele, muitos especialistas se mostram receosos porque o Ministério da Saúde ainda não declarou que indetectáveis não transmitem o vírus. O médico lembrou que os estudos que fundamentam o Indetectável = Intransmissível (I = I) são baseados na vida real de casais sorodiferentes, incluindo implicações como os escapes virais, cujos riscos não se comprovaram relevantes.
Essa mesma consideração é feita pelo investigador-chefe da Divisão de Doenças Infectocontagiosas da Escola de Medicina da Carolina do Norte (EUA) e um dos principais pesquisadores da HPTN 052, Myron Cohen. "Apenas vemos transmissões quando os medicamentos falham e isso eleva a carga viral, não flutuações como os escapes", explicou, por e-mail. A mesma abordagem é dada pelo site oficial do I = I: "os escapes virais não têm apresentado aumento na transmissão do HIV".
Para Jan, outro ponto a ser considerado é a existência de outras infecções sexualmente transmissíveis (ISTs), com o a sífilis, a gonorreia e o HPV – que pode levar ao câncer. Assim, na opinião do médico, além de poder transmitir o HIV (caso esteja em meio a um escape viral, por exemplo), o soropositivo pode contrair ISTs e até um HIV multirresistente, que poderia atrapalhar seu tratamento, caso opte por fazer sexo sem preservativo.
"Se ele contrai um vírus multirresistente, vai deixar de ser indetectável porque o remédio que toma não funcionará mais. Além disso, o preservativo é uma questão de higiene. Repasso aos meus pacientes que, apesar da carga viral indetectável, devem usar preservativo. Não tenho dúvida que a chance de transmissão depende da carga viral. Quem tem carga viral indetectável é improvável que transmita, mas pode transmitir."
Por outro lado, Ana Cristina Medeiros Gurgel, também médica infectologista, concorda com a assertiva do I = I. "Os CDC [Centros para Prevenção e Controle de Doenças, dos Estados Unidos] já reconheceram que o soropositivo com carga viral indetectável não transmite o HIV. Repassamos isso aos pacientes com as devidas orientações já que isso vale só para o HIV. Em uma relação sexual sem preservativo com outros parceiros, o risco de se contaminar com outras doenças, como a sífilis, se torna possível."
Independentemente da posição, é consenso entre os médicos que a carga viral indetectável só é alcançada com o tratamento efetivo. Segundo Arilson, infelizmente algumas pessoas não conseguem realizá-lo adequadamente por fatores diversos no Brasil. "Tem pessoas que não têm dinheiro para comprar o passe de ônibus e ir buscar o remédio", relatou. "Aconteceram situações de receitar um comprimido que tinha de ser tomado com leite e o paciente dizer que não tomou a medicação. Estava pronto para dar bronca, mas aí ele me disse: ‘você falou para tomar com leite ou alguma comida, e eu não tenho comida’. O que vou dizer para uma pessoa assim?"
O que diz o governo
Em entrevista enquanto visitava Londrina, o ministro da saúde, Ricardo Barros, afirmou que há cerca de 260 mil pessoas soropositivas que não se tratam no país. Com isso, justificou o fato de o protocolo nacional de tratamento e prevenção para HIV/Aids não encampar publicamente a ideia do I = I. "Há um estigma contra o portador de HIV que precisa ser superado. Evidentemente, o fato de o soropositivo com carga viral indetectável não transmitir HIV é um elemento positivo, mas entendemos que este trabalho [de encampar a campanha do I = I] não se aplica na medida que as pessoas que são portadoras não comunicam à sociedade que são portadoras. Imagine essas 260 mil pessoas que são portadoras e não se tratam para que outros não saibam que são soropositivas: o risco que temos de transmissão é muito elevado", comentou.
O que dizem os ativistas
O ativista Gabriel Estrela afirmou por e-mail que ainda parece existir uma preferência pelo medo como estímulo à prevenção em detrimento das evidências científicas. "Me parece que quem evita esse discurso [de que indetectáveis são intransmissíveis] é porque percebeu que o terror da Aids não é suficiente para fazer as pessoas reconhecerem o preservativo como melhor opção de prevenção, a longo prazo quero dizer. De início, esse terrorismo foi muito eficaz, mas, uma vez que a tecnologia evoluiu e novas evidências foram produzidas, perde-se o medo que foi construído na década de 1980 e 1990 e fica conosco apenas o estigma."
Para Gabriel, o terrorismo que faz muitas pessoas usarem preservativo também faz com que soropositivos sejam vistos como vilões e armas biológicas. "Acredito fortemente que a única maneira de resolvermos isso - não a curto prazo, mas de forma duradoura - é através da educação. Precisamos promover processos de educação em saúde sexual que levem em consideração todas as evidências e tecnologias novas no campo da sexualidade e da prevenção para que cada um faça suas escolhas com plena consciência dos riscos e benefícios de suas decisões."
(Com informações de Vitor Ogawa)