Escrever esse depoimento mexe bastante comigo. Digo isso porque, de todas as experiências que tive na vida, essa foi uma das que mais me marcaram. Se por um lado os fatos que aqui relato me ensinaram lições lindíssimas, por outro me fez conhecer a profundidade da crueldade humana - uma crueldade ignorante, excludente e preconceituosa, como toda crueldade é no seu recôndito mais profundo. Para me preservar, não vou dizer como me chamo nem o nome das pessoas relacionadas a essa história. Entretanto, posso dizer que sou professora e que tudo o que relato aqui se passou em Londrina, no ano passado.
No segundo semestre, a partir de agosto, conheci um homem e começamos a nos relacionar. Logo no primeiro mês, ele fez um check-up rotineiro de saúde e descobriu que era soropositivo. Ele foi honesto comigo, falou sobre o resultado do exame e me aconselhou a procurar um médico o quanto antes. Como não havíamos usado preservativo em todas as relações, fiquei preocupada com a minha saúde, mas mais ainda com a dele, uma vez que o diagnóstico, inesperado, deixou-lhe muito abalado. Eu ofereci todo o meu apoio e ele, que morava sozinho na cidade, aceitou. Até hoje, a família dele e seus amigos não sabem de nada.
Como estava apreensiva, segui a recomendação dele e marquei uma consulta com um médico de uma determinada especialidade. No início da consulta, o médico estava alegre, falando bastante, perguntando várias coisas. Quando entrei no assunto e disse que meu namorado (passei a chamá-lo assim, embora nunca tivéssemos falado em namoro) havia sido diagnosticado como soropositivo, ele mudou de feição. Se antes conversava olhando para mim, depois que revelei o motivo da consulta ele cravou os olhos no receituário sobre a mesa e se tornou monossilábico. Para todas as perguntas que eu fazia para entender a situação pela qual passava, ele respondia "sim", "não", "talvez". Nada mais do que isso.
Leia mais:
Soropositivos indetectáveis não transmitem HIV a parceiros sexuais, afirmam pesquisas
Pesquisas monitoraram dezenas de milhares de atos sexuais desprotegidos
Médicos brasileiros divergem sobre intransmissibilidade do HIV
Conheça Bruce Richman, idealizador da campanha I = I no mundo
O pior momento da consulta ainda estava por chegar, no entanto. Depois que terminou de preencher a requisição de exames, o médico olhou para mim e se permitiu falar um pouco mais: "corajosa você, hein?". Essa frase, carregada de preconceito, atravessou-me como uma flecha. Não consegui esboçar reação alguma, de tão perplexa que fiquei. Apenas peguei o papel e saí da sala, enquanto era tomada por uma indignação fulminante. Como ele podia falar algo daquele tipo? Que total falta de respeito para comigo e, principalmente, com o meu namorado. Cheguei em casa transtornada e, diante de toda a situação, chorei tudo o que pude. Não contei nada ao meu companheiro.
Foram necessários alguns dias para que eu começasse a me esquecer dessa experiência no consultório. Nesse tempo, fiz os exames e descobri que estava tudo bem: não havia contraído o vírus HIV. Foi logo depois disso, contudo, que entendi mais profundamente o conceito de janela imunológica. Quando uma pessoa suspeita que contraiu o vírus, é preciso esperar algumas semanas para fazer o exame e descobrir se houve ou não infecção. Pelas contas que fiz, parecia aconselhável solicitar outro exame dali a alguns dias, para cobrir totalmente o tempo em que meu namorado e eu tivemos relações antes do diagnóstico dele.
Dessa vez, marquei uma consulta com um médico de outra especialidade e a experiência foi ainda pior. Quando lhe contei toda a história, ele, que estava aparentemente calmo, bebendo água de um squeeze, alterou-se. Primeiro, disse coisas como "puta que pariu!" e "que situação!" e depois passou a me indagar sobre como meu namorado havia contraído o vírus. Sem entender o porquê daquilo, respondi que não sabia e tentei trazê-lo de volta à consulta, para que respondesse às minhas dúvidas e me desse uma receita para novos exames. Foi então que ele se revelou em toda a sua crueldade.
- Há quanto tempo vocês estão namorando? – perguntou.
- Alguns meses – respondi, laconicamente.
- Quantos meses? – tornou a perguntar, um tanto imperativo.
- Quase um ano – menti, deliberadamente, tentando me proteger de qualquer comentário absurdo.
- Veja só, eu não sou seu pai, você faz o que achar melhor. Mas meu conselho é que você largue ele. Se fosse um relacionamento de 10 anos e todas as famílias se conhecessem, tudo bem. Mas não é o caso e o mundo está cheio de homens para você.
Minha mentira sobre o tempo de namoro nada adiantou. Se, na primeira consulta, senti como se uma flecha tivesse me atravessado, nesta última perdi toda a esperança de ter um atendimento médico humanizado. Tive vontade de gritar, de dizer a ele tudo o que merecia ouvir, mas não consegui. Simplesmente, não consegui. Peguei a receita, saí da sala, fui até o carro, onde chorei novamente. Depois, pensei em denunciá-lo, mas não tinha prova alguma. Seria a minha palavra contra a dele.
Novamente fiz os exames e tudo estava bem. Desisti de voltar a algum médico para tirar as dúvidas que tinha. Por isso, mergulhei na internet, encontrei sites de referência e, por ali, soube tudo o que era necessário. O relacionamento, que acabou por se estabelecer sem que nada fosse dito a respeito, terminou algum tempo depois, no entanto. Nós nos redescobrimos amigos, ou melhor, irmãos, e somos ligados até hoje. Percebi também que, quando um casal recebe um diagnóstico de HIV, leva um tempo para que os dois se reencontrem diante de tantas dúvidas que eclodem de ambas as partes. E, nesse processo, como estávamos havia pouco tempo juntos e os laços ainda eram frágeis, uma amizade forte nasceu e tomou lugar.
Assim, se por um lado meu ex-namorado me ensinou muita coisa boa, coisas que jamais imaginei aprender e que levarei para o resto de minha vida, por outro encarei a crueldade humana e a desumanização na figura de médicos que, em vez de julgarem, deveriam ajudar aqueles que os procuram. Afinal de contas, uma das frases do juramento que os médicos fazem quando se formam é: "prometo que, ao exercer a arte de curar, mostrar-me-ei sempre fiel aos preceitos da honestidade, da caridade e da ciência". Comigo não houve honestidade digna, nem caridade com a situação que vivia e tampouco conhecimento científico.
(A professora pediu para não ser identificada no texto.)