Literatura

Para ler em poucas horas

07 jun 2005 às 17:28

"Quem fala pelos mortos? Ninguém. Na verdade, ninguém fala pelos mortos, a não ser que o façamos". Ditas muito tempo antes por um detetive de Homicídios de Nova York, essas palavras ocupavam a mente do chefe de investigações da Promotoria Pública de Manhattan enquanto dirigia pela Primeira Avenida na hora do almoço de 6 de janeiro de 1997.

Foi pensando nelas que Andy Rosenzweig passou em frente ao restaurante The Flower Pot e lembrou que ali, 27 anos antes, teve início uma briga que culminou no assassinato do dono do lugar, Pete McGinn, e do pugilista de carreira medíocre Richie Glennon.


O autor do duplo homicídio, Frankie Koehler, foi alvo de uma intensa caçada na época das mortes. Mas passaram-se dias... semanas... meses... anos sem qualquer novidade, sem o menor indício de seu paradeiro. Naturalmente, aos poucos todos foram esquecendo a história.


Movido por uma ponta de remorso – há muito tempo não lembrava de Glennon, que fora seu amigo –, Rosenzweig decidiu saber, quase três décadas depois, que fim teve o assassino. Logo descobriu que o caso estava arquivado.


Ao contrário do Brasil, nos Estados Unidos crimes de morte não prescrevem com o tempo: a busca pelo criminoso fica oficialmente aberta até que ele seja capturado e condenado – ou até que ele morra.


E Koehler tinha desaparecido de tal maneira que os investigadores decidiram considerá-lo morto e, assim, dar o caso por encerrado – por sinal, o fim de investigações como essa contribuía para a manutenção das portentosas estatísticas da polícia nova-iorquina (Gourevitch informa que na cidade quase 90% dos casos de assassinato são concluídos. No Brasil, um dos estudos mais otimistas – elaborado em conjunto por Ministério da Justiça, ONU e Sesi – mostra que o índice de homicídios esclarecidos não ultrapassa 20%).


O quase aposentado Rosenzweig, no entanto, intuiu que Koehler poderia estar vivo em algum lugarzinho dos Estados Unidos – e reabriu a investigação. A nova busca pelo criminoso é o tema de Um caso arquivado, segundo livro do jornalista norte-americano Philip Gourevitch, lançado no Brasil em 2002 pela Companhia das Letras.


O premiado livro de estréia de Gourevitch, publicado pela mesma editora em 2000, é o impressionante Gostaríamos de informá-lo de que amanhã seremos mortos com nossas famílias. É um volume de quase 400 páginas que relata o massacre dos tutsis pelos hutus em Ruanda, minúsculo país africano que em 1994 perdeu quase um milhão de habitantes em pouco mais de três meses de barbárie patrocinada pelo próprio Estado e tocada a golpes de facão.


Leitura rápida
Tímido se comparado ao livro sobre Ruanda, Um caso arquivado tem apenas 140 páginas. É uma história real, mas que pode ser lida como um pequeno romance policial. Não tem a profundidade nem a intensidade de A sangue frio, do também norte-americano Truman Capote – talvez a melhor reportagem policial já publicada em livro –, mas não deixa de ser ótima leitura, daquelas concluídas em poucas horas.


Pode ser que o leitor não tenha tempo livre suficiente para devorar Um caso arquivado em cinco ou seis horas seguidas. Mas, se, por exemplo, levá-lo em uma viagem de ônibus que saia às oito da manhã da capital paranaense com destino a Campinas (SP), poderá terminar a primeira parte da obra – intitulada "Vivo ou morto" – antes da parada para o almoço.


Os primeiros capítulos reconstituem rapidamente o crime e traçam um perfil do obstinado investigador Rosenzweig, que antes de se aposentar quer enfrentar o descaso de colegas da polícia e terminar a carreira com a consciência tranqüila de quem não deixou o caso sem solução. O personagem é digno das tramas policiais hollywoodianas – não por acaso, será interpretado por Tom Hanks em um filme que, por enquanto, só tem o nome: A cold case, título original do livro de Gourevitch.


Na volta ao ônibus após a refeição, dá para tirar o sono atrasado durante umas duas horas e, em seguida, ouvir por um bom tempo a conversa de três mulheres do interior paulista que se conheceram na viagem e discutem peculiaridades gastronômicas curitibanas como "vina" e outras não tão peculiares como "pão francês". "Um dia eu fui comprar três ‘filãozinhos’ e o padeiro não entendeu. Só quando eu apontei o pão ele me disse que se chamava pão francês. Em Curitiba eles chamam filãozinho de pão francês!", talvez diga uma delas, quase indignada.


Se ouvir isso, o leitor saberá que é melhor voltar a Gourevitch e iniciar a segunda parte ("Ajuste de contas"), que dá atenção especial a Frankie Koehler. Delinqüente juvenil que aprendeu os caminhos da bandidagem desde cedo, ele cresceu em um bairro nova-iorquino povoado por imigrantes irlandeses e que ostenta o sugestivo nome de Hell’s Kitchen. Viraria um criminoso de motivações banais e discursos contraditórios.


No livro, ainda há espaço para o advogado de mafiosos Murray Richman, também entrevistado por Gourevitch – em sua investigação particular, o jornalista ouviu mais gente que a própria polícia. O excêntrico Richman (a começar pelo próprio nome) está muito bem definido na orelha do livro: parece saído de um filme de Martin Scorsese ou de um livro de Mario Puzo.


Caso a viagem do leitor tenha sido prolongada por um desvio – possivelmente problemas na BR-116 –, dá para chegar tranqüilamente à última página antes do desembarque na rodoviária de Campinas.


Longa espera
A leitura é breve, mas o reencontro com o detetive Andy Rosenzweig, desta vez no cinema e na apropriada pele do bom moço Tom Hanks, tende a demorar bem mais – antes, dá até para encarar as 400 páginas de histórias de Ruanda.


Os direitos de exibição de Um caso arquivado foram comprados ainda em 2000, quando Gourevitch escrevia o livro, mas sua produção foi sendo atrasada na medida em que Hanks dava prioridade a outros filmes, como Terminal e O Expresso Polar.


Não há previsão de estréia – o site de um fã-clube do ator informa que, no final do ano passado, A cold case ainda estava em fase de pré-produção. Dependendo da atuação de Hanks e – claro – do ator escalado para interpretar o advogado Richman (figura também conhecida por "Don’t-Worry" Murray), vale o ingresso quando a película for exibida por aqui.

Serviço
Um caso arquivado
Philip Gourevitch
Companhia das Letras
2002
140 páginas
R$ 30,50


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