O jornalista polonês Ryszard Kapuscinski afirmou certa vez que recusa o jornalismo feito a partir dos hotéis com ar-condicionado. Queria dizer que, ao contrário da maioria de seus colegas de profissão, prefere evitar as rodas da alta política, as personalidades ilustres, os palácios governamentais.
Uma das provas dessa postura está em seu livro Ébano: Minha vida na África, concluído em 1998 e publicado no Brasil quatro anos depois, pela Companhia das Letras. Ainda na breve introdução, Kapuscinski revela que gostava de viajar de carona em caminhões, peregrinar com os nômades pelo deserto e se hospedar com os camponeses das savanas tropicais.
Fez isso inúmeras vezes desde 1958, quando conheceu o continente a serviço de uma agência de notícias da Polônia. Naquele momento, aos 26 anos, realizava o sonho de ser correspondente na África – outra raridade no meio jornalístico. Alguns dos episódios vivenciados por ele em diversos países africanos nos 40 anos seguintes são contados nos 29 capítulos de Ébano. A julgar pela riqueza dos relatos, dá para imaginar que, por questão de tamanho, muita coisa boa teve que ficar de fora.
De 10 mil para 50
Já de início, o autor confessa que a África é grande demais para ser descrita – por isso, o livro não seria sobre a África, mas sobre algumas pessoas que lá encontrou e com as quais passou algum tempo. Argumenta que a África só existe como denominação geográfica, uma vez que ela é um "planeta diferente", uma mistura tão rica e complexa que tentar defini-la seria simplificá-la e cair no senso comum.
Mesmo assim, após percorrer as primeiras páginas da obra, o leitor pode, à revelia do autor, arriscar ao menos um adjetivo para o continente: surreal. Ao chegar à última página, verá que talvez não tenha passado muito longe do que ele verdadeiramente é.
A África de hoje é o produto de 400 anos de escravidão e uns tantos outros de colonização, seguidos por um processo de descolonização que teve a astúcia de reunir em meia centena de países artificiais o que eram 10 mil pequenos reinos, nações, uniões étnicas e federações.
Nesse longo período, o explorador europeu agiu de tal maneira que conseguiu envenenar completamente a relação entre os africanos, jogando uns contra os outros na escravidão e, mais tarde, na descolonização.
Desse contexto surgiram as guerras civis que fazem a fama do continente e que volta e meia são noticiadas pela TV para em seguida ser esquecidas – poucos sabem que a do Sudão, por exemplo, já dura mais de duas décadas.
Não por acaso, no século passado, a maior parte dos africanos morreu por mãos de negros, e não de brancos. As lutas entre irmãos de cor produzem outras estatísticas trágicas: em um lugar em que mais da metade da população tem menos de 15 anos, as crianças formam boa parte das tropas e são maioria nos miseráveis campos de refugiados.
Mentes aprisionadas
A história da Libéria, narrada em um dos mais instigantes capítulos de Ébano, é uma peculiar coleção de absurdos herdados da ação do homem branco na África – o que prova que até quando teve boas intenções o homem branco falhou. O país, que fica no extremo oeste do continente, foi criado em 1847 por escravos recém-libertados das plantações de algodão da Geórgia, Virgínia e Maryland, nos Estados Unidos.
Esses ex-escravos foram levados à África por norte-americanos que acreditavam que a melhor forma de compensá-los pelos sofrimentos da escravidão era enviá-los de volta à terra de seus antepassados. Resultado: sem jamais ter vivido em uma sociedade que não a escravocrata, os seis mil ex-escravos que fundaram a República da Libéria (cerca de 1% da população de então) proclamaram-se os únicos cidadãos do país e passaram a dominar e escravizar os 99% restantes.
Isso significa que, ainda no século XIX, muito antes da introdução do apartheid na África do Sul, os poderosos da Libéria (os ex-escravos e seus descendentes) já haviam adotado essa forma de segregação. E em 1869, um ano antes do nascimento de Lênin, inventavam também o sistema de partido único.
O curioso é que, nos anos 80 do século XX, quando um golpe de Estado finalmente levou ao poder a classe oprimida liberiana, o que se viu foi uma seqüência de ditaduras sanguinárias, pouco diferentes das conduzidas pelos herdeiros daqueles ex-escravos plantadores de algodão.
Leões e mosquitos
Ébano não é uma coletânea das matérias curtas e objetivas produzidas diariamente por Kapuscinski para sua agência de notícias. É um livro constituído por material inédito, em que o autor parte de suas experiências pessoais – viagens pelo continente, coberturas de golpes de Estado, convívio com tribos e seus costumes – para caprichados ensaios sobre os mais diversos aspectos da vida dos africanos.
A espera de algumas horas pela partida de um ônibus em Gana, por exemplo, é o pretexto para um pequeno estudo sobre relação dos africanos com o tempo – eles lhe atribuem uma dimensão muito mais elástica e subjetiva do que a aceita por outros povos. "Quando o ônibus vai partir?", pergunta Kapuscinski, ao que o motorista responde, espantado: "Como assim, quando? Quando estiver lotado!"
Mais adiante, ao descrever uma consulta, o autor aproveita para contar a história dos antepassados do médico de origem indiana. Trazidos para a África, eles ajudaram na construção da ferrovia entre Quênia e Uganda e lá sofreram com a onda de terror espalhada pelos leões "comedores de homens" – animais que ganharam notoriedade com o filme A Sombra e a Escuridão, estrelado por Val Kilmer e Michael Douglas.
Nessa mistura de relato de viagem, reportagem, crônica e ensaio, o leitor fica sabendo que os maiores inimigos do homem na África não são leões, serpentes ou elefantes, e sim os mosquitos. E que a malária, que mais de uma vez importunou o jornalista, traz muito mais que dor: trata-se, nas palavras dele, de uma verdadeira experiência mística.
Calor e sensibilidade
O texto de Kapuscinski é extremamente literário, e nota-se que cada frase sua foi cuidadosamente lapidada antes de tomar forma definitiva. Aliás, Ébano foi escrito ao longo de um ano inteiro, à razão de uma página por dia – o que comprova a preocupação do autor em deixar para trás a pobreza e a urgência do factual e da informação simples e, por meio de uma prosa inspirada, conduzir o leitor à riqueza de um jornalismo muito mais aprofundado.
Mesmo entre os círculos jornalísticos, o talentoso polonês, hoje com 73 anos, é pouco conhecido no Brasil. Seu currículo, no entanto, é nada discreto. Correspondente também na Ásia e na América Latina, presenciou 27 golpes de Estado e revoluções e escreveu 20 livros. É considerado um dos maiores repórteres do século XX e, na época da publicação de Ébano, recebeu o título de escritor do ano na França.
Desprovido de preconceitos e com uma singular sensibilidade, Kapuscinski descreve no livro as particularidades de povos hospitaleiros, surpreendentes, enigmáticos. De seres humanos que compartilham uma busca eterna por equilíbrio em um continente tão instável e em que as condições de vida são, quase sempre, precárias – a começar pela impetuosidade do clima.
"O africano é um homem que, do nascimento à morte, luta incessantemente contra a natureza implacável de seu continente, e só o fato de permanecer vivo e perseverar já é sua maior vitória", conclui o jornalista. A grandiosidade dessa vitória cotidiana pode ser medida pelo número de vezes e pela diversidade de adjetivos que Kapuscinski emprega para mostrar que o calor foi, provavelmente, seu maior adversário nesses quarenta anos de trabalho na África. Agruras de quem recusa o comodismo e o ar-condicionado dos hotéis.
Serviço
Ébano: Minha vida na África
Ryszard Kapuscinski
Companhia das Letras
2002
358 páginas
R$ 47,00