Aconteceu uma coisa estranha durante a projeção prévia do longa "Fédro". Em dado momento, Reynaldo Gianecchini se dirige a José Celso Martinez Corrêa, abreviando seu nome completamente e o reduzindo a Zé, maneira íntima de tratar esse ator-diretor que é mais conhecido como Zé Celso.
Nesse instante, não sei bem por quê, me lembrei de outro Zé, o Zé do Caixão criado por José Mojica Marins.
São diferentes mas próximos em uma série de coisas. Cada um combate o monoteísmo à sua maneira. Zé do Caixão vê o povo como uma carneirada submissa, a quem despreza, não hesita em matar para satisfazer um desejo, nem em humilhar os pobres supersticiosos cristãos.
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A semelhança diz respeito ao lugar que Zé, o Celso, o dionisíaco, atribui ao desejo. Para ele é um lugar de encontro, de afetividade, do vinho, do teatro. É às religiões monoteístas que se opõe, não às crenças. Em particular as indígenas e de origem africana, que incorpora de várias formas.
Não por acaso, seu diálogo com Gianecchini se desenvolve em torno da libertação. Este é o ato primordial do teatro. Estará Gianecchini preparado para ele? Bem, logo de cara ele esclarece que começou no Oficina de Zé Celso, mas logo foi embora, seduzido pela televisão. Parece lamentar um pouco o tempo perdido. O encontro é em busca desse tempo. Ele se entrega a Zé Celso como Fédro a Sócrates, o mestre maior.
Este exerce seu poder, não à maneira de Zé Mojica, pela imposição e pelo terror. Mas, sim, há um quê de imposição nisso. Mas pela libertação vale tudo. E essa, na visão de Zé Celso, é a finalidade última do teatro.
A nudez. O teatro é, em sua concepção, se apoderar do próprio corpo e ao mesmo tempo doar esse corpo ao outro.
Por vezes é constrangedor. E Gianecchini sente bem o constrangimento quando Zé Celso sugere que ele tire a roupa. Reluta, mas por fim aceita. Não é dos momentos mais felizes da conversa. A ideia de nudez parece mais consequente quando, ao constatar que o seu microfone saiu do lugar, Zé Celso pede para o recolocarem ali mesmo, em cena –sem esconder nada. Tudo tem de ser às claras.
Oswaldiano, tropicalista, mutante, Zé Celso representa ainda esse espírito transgressor, bem anos 1960, que hoje soa como antiguidade num mundo como o atual, de estruturas fechadas, indevassáveis. Isso parece fazer bem a ele.
Lembro o último filme de Mojica, em que o ex-candidato a super-homem nietzschiano Zé do Caixão sai da cadeia e, antes de chegar à primeira esquina, é assombrado pelo tráfego violento da cidade. Seus pobres poderes já são insuficientes contra a agressividade neoliberal.
Zé Celso parece ter se dado melhor com o tempo presente. Está no apartamento para conversar, tocar piano e cantar. A cidade parece distante, um cenário, uma abstração que não pode atingir o diretor.
Talvez seja um problema do teatro –ocupa um lugar especial no mundo e nas pessoas, mas esse lugar é específico, não atinge o dia a dia. Ao contrário da Grécia, onde os deuses circulavam entre os homens, aqui o monoteísmo vigora fora do teatro e dos terreiros de crenças indígenas ou afro-brasileiras. O que não impede que essa conversa, que essa adesão plena ao encontro não tenha sua beleza e, talvez, eficácia.
Em todo caso, essa conversa soaria mais dotada de tempos se tivesse alguns pontos de respiro. Por exemplo, alguns temas poderiam reger capítulos. Não era preciso perder o tom de espontaneidade buscado –os temas, em Zé Celso, são recorrentes–, mas daria um tempo, um descanso ao espectador e o deixaria mesmo em melhores condições de absorver as palavras que podem não ser socráticas, mas são de um mestre, sim.
Quando, por exemplo, lembra que o teatro é tragédia ou comédia, mas não
drama –não mais, em todo caso–, lança bem o que seu diálogo tem de mais
constante -o combate de Eros contra Tânatos, ou entre experimentação e
rotina, é que, em sua visão, dá sentido à existência.
Fédro
Quando: Estreia 05/01
Onde: Star+
Elenco: José Celso Martinez Corrêa e Reynaldo Gianecchini
Direção: Marcelo Sebá
Avaliação: muito bom