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Uma história real, contada por um "mentiroso"

Fernando Jasper
22 dez 2004 às 17:28
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"A história dos quatro membros da família Clutter, brutalmente assassinados, e dos dois criminosos, executados cinco anos depois". Essa apresentação aparece logo na capa da mais recente edição brasileira de A Sangue Frio, publicada pela Companhia das Letras.

Antes mesmo de abrir o livro, o leitor já sabe quem morreu e qual o destino dos criminosos. Os nomes dos bandidos, Perry Smith e Richard Hickock, estão logo ali, na orelha da capa. Mais algumas páginas e - pronto! - um prefácio conta o pouco que faltava saber sobre essa história real publicada pela primeira vez há quase quarenta anos.

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Que interesse desperta uma obra que poderia ser classificada como "suspense" se, de cara, o leitor tem acesso a informações tão importantes? Quem suportaria ler as mais de quatrocentas páginas seguintes sabendo de tudo isso?

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Tente, pois, ler a primeira página. Em seguida, tente evitar chegar até a última sem estar atento a cada nova linha do envolvente texto do pai dessa obra-prima, Truman Capote.

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A Sangue Frio não se limita à descrição do crime. Ali está registrado o cotidiano da família Clutter e da pacata cidade agrícola de Holcomb, no Kansas, Meio-Oeste dos Estados Unidos. Está também uma minuciosa descrição de cada passo de Smith e Hickock antes e depois de deixarem toda uma comunidade em estado de choque. Nem as noites de insônia dos detetives do FBI escaparam ao olhar de Capote. Pressionados pelos moradores, os investigadores se atormentavam frente a um crime cuja solução parecia não existir. Quem, afinal, tinha matado os dois filhos, a esposa e o rico fazendeiro Herbert William Clutter, todos eles admirados pelos vizinhos e livres de qualquer desconfiança? O leitor já sabe. Mas, ansiosamente, procurará respostas para as várias outras perguntas que irão aparecer pelo caminho.


Questão jornalística

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Se o livro de Truman Capote, por si só, já rendia horas de tensão alimentada por uma narrativa sedutora, a questão jornalística que gira em torno dele ajudou a colocá-lo de vez no centro das atenções. Afinal, A Sangue Frio era, antes de tudo, um relato jornalístico. Ao menos, deveria ser.


Antes de virar livro, a história foi publicada em quatro edições da revista The New Yorker, da qual Capote era repórter, ou melhor, escritor. Meca do new journalism, gênero cuja principal característica era apresentar textos jornalísticos escritos com recursos da literatura, a New Yorker levava essa definição tão a sério que seus repórteres não podiam se limitar a uma rigorosa apuração dos fatos. Tinham que fugir do jornalismo convencional - e de seus textos maçantes sustentados por uma pretensa objetividade - e escrever as histórias de maneira saborosa e atraente, como acontece com a boa literatura. Tinham que ser, enfim, grandes escritores.

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Os colegas de revista e de new journalism de Capote morreram de inveja de seu livro, em especial Gore Vidal e Norman Mailer. Reza a lenda que certa noite os dois, habituais companheiros de mesa do autor de A Sangue Frio, tiveram de aturar a seguinte declaração do colega: "Tudo isso que vocês estão dizendo pode ser muito interessante, mas a verdade é que eu escrevi uma obra-prima, e vocês não".


Indisfarçavelmente afeminado, Capote era extremamente vaidoso, prepotente e, principalmente, venenoso. Talvez por isso tantos desafetos seus gastaram anos de suas vidas para esculhambar A Sangue Frio. Conforme escreve o jornalista Matinas Suzuki Jr. no posfácio da edição publicada pela Companhia das Letras, muita gente da própria New Yorker não havia gostado do trabalho. Uma das repórteres argumentou ao diretor da revista que "o relato violava alguns dos princípios fundamentais do semanário, era sensacionalista e alguns de seus elementos cruciais pareciam sem sentido e falsos".

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Desconfianças desse tipo sempre rondaram reportagens e livros classificados como new journalism, e as primeiras pedras costumam atingir justamente as vidraças da apuração e das declarações dos personagens. Para os detratores do gênero, recriar no presente toda uma situação - como, por exemplo, as minúcias do crime de A Sangue Frio e o que cada personagem pensava naquele momento - exigia uma boa dose de criatividade, ou melhor, de "invenção" de quem escreve o texto. Naturalmente, essa desconfiança era ainda maior em relação a Capote.


Memória surpreendente

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Conhecido como mentiroso, o autor jurou ter ouvido todos os seus entrevistados sem fazer anotações ou utilizar o gravador - práticas que geralmente inibem o entrevistado. Mas o ponto alto da "mentira" não estava aí: ele ainda dizia ter treinado a técnica com um amigo, que lia um longo texto para Capote, em seguida, conseguir repeti-lo com "cerca de 95% de precisão".


Como Capote entrevistou dezenas de pessoas durante um ano e meio, todas elas mais de uma vez, essa suposta precisão acabou sendo um prato cheio para os críticos. A situação chegou a tal ponto que, para desfazer, de uma vez por todas, as dúvidas sobre a veracidade das histórias contadas na reportagem, a New Yorker enviou um experiente "checador" para o Kansas. A conclusão surpreendeu a todos: ele afirmou nunca ter visto um repórter tão preciso nas apurações.

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Outro aspecto alvo de críticas - aliás, o mais evidente para o leitor - é que Capote, de tanto conversar com os assassinos na prisão, teria se tornado um verdadeiro confidente deles, tendo, inclusive, sido amante de Perry Smith. Boatos ou não, nota-se, especialmente no último capítulo, um esforço do autor para provar a insanidade dos assassinos - possibilidade que poderia livrá-los da pena de morte. Capote questiona, inclusive, a maneira como eles foram julgados e, em seguida, condenados à forca.


Capote e seu livro renderam todo o tipo de controvérsia e discussões apaixonadas, volta e meia ressuscitadas. Mas, deixando-se de lado o aspecto jornalístico da obra e analisando-a apenas como um romance, chega-se à mesma conclusão a que chegaram até mesmo os mais ferrenhos opositores do autor: A Sangue Frio é um suspense dos melhores. Até quem franzia a testa para o jornalista Capote admitia que, mentiroso ou não, ele convenceu como escritor.


Serviço
A Sangue Frio
Truman Capote
Companhia das Letras
2003
440 páginas
R$ 44,00


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