Escrever um livro é talvez a missão mais exigente entre todas as chatices que a humanidade inventou para se aborrecer. Organizar os infinitos detalhes que dão coerência a uma estória inventada é uma tarefa divina que queima o cérebro de um simples mortal; a demanda é sobre-humana." Quem diz isso é o protagonista do romance de estreia do ator Pedro Cardoso que confessa, logo na primeira linha, que não gosta de ler - mas gosta de livros.
Desde cedo, carregava um exemplar porque achava que, se acreditassem que ele era um grande leitor, não sentiriam pena por ele estar sempre sozinho. Atrás de seu escudo, ele oscilava entre o sono e a vigília, pensava em coisas diversas, nunca lia. Mas ele se apaixonou, e decidiu escrever um livro para a moça - ela, sim, uma grande leitora.
Esse é, basicamente, o enredo de O Livro dos Títulos, uma história de formação, de amor e de loucura que acompanha o personagem ao longo de sua vida. Mas há mais. O pano de fundo é um Brasil socialmente insalubre, em "convulsão social com o surgimento de várias denúncias de casos de corrupção envolvendo todas as forças políticas". Um país do pré e pós-guerra civil que, ao seu término, terá se dividido em "420 Estados independentes, oriundos das milícias que se formaram durante os anos de conflito. O novo mapa político terá sido definido em uma infinidade de tratados e armistícios, que ficarão conhecidos como Tratados da Des-União Brasileira ou Des-Tratos da Fundação", conta o narrador.
Pedro revela que quis escrever o livro numa tentativa de organizar algumas ideias e ansiedades sobre o País e compartilhar suas inquietações. "Escrevi sob o impacto dos acontecimentos dos últimos anos e um pouco desesperado de tanta coisa sobre as quais eu gostaria de falar. Mas o livro é um romance e não um ensaio teórico. O que os personagens dizem não é o que eu diria. Eu acho que eu nem sei bem o que eu diria - estou vazio de certezas", diz.
Ele prefere não dar detalhes sobre a história ou falar sobre o país que criou e que está em desintegração, mas, voltando aos dias de hoje, comenta que são muitos os motivos para nos preocuparmos - e a "tentação fascista que ilude os tolos" é o principal deles. "Nenhum caminho autoritário nos trará nada de bom. Todo totalitarismo é falso e covarde. E os moralismos que se esboçam, com reações descabidas contra a sexualidade e os muitos modos de amar que são próprios da humanidade, são mesmo inquietantes e devem sofrer a nossa mais serena e severa oposição", diz.
Pedro quer ter esperança, porque "desesperança é um luxo de gente rica e indiferente". O ator, no entanto, ainda não sabe no que acreditar. "Tenho fé que algo novo haverá de surgir, mas não sei o que seja nem de onde virá. Estou à espera. Ativamente, esperando que algo venha e me diga o que nunca imaginei que seria o futuro. Eu tenho a convicção de que só algo que ainda não se manifestou nos haverá de tirar desse atoleiro em que nos encontramos."
Pedro Cardoso vive hoje em Portugal e diz que a decisão não tem a ver com o momento do Brasil. Sempre quis ter uma experiência como essa, mas tudo aconteceu rápido demais - carreira, família - e perdeu a chance de fazer isso mais jovem. Quando teve dinheiro para bancar o sonho, não conseguiu se desvencilhar das obrigações no Brasil - por mais de uma década, ele foi o Agostinho, da Grande Família, sucesso da Globo que chegou ao fim em 2014. Seus projetos atuais estão ligados à peça O Homem Primitivo, escrita por ele e por Graziella Moretto, sua mulher, que trata da gênese e das consequências do sexismo. Graziella planeja um filme sobre a peça que aborda uma questão que, comemora o ator, "está finalmente ganhando o protagonismo que lhe é devido".
Fora isso, tenta emplacar uma série sobre o Brasil, seus ricos e seus pobres, que não teve, até agora, o apoio de nenhuma emissora. Se não der certo mesmo, o novo escritor considera transformá-lo num romance. "No mais, estudo inglês e francês como um adolescente", brinca.
Ele está no País para uma série de lançamentos. O banner que coloca atrás da mesa de autógrafos diz: "Ator desempregado à procura de leitores". Tudo não passa de uma graça, garante. "Uma brincadeira com o fato de eu ter ficado no ar por muitos anos e ter desaparecido desse convívio semanal com o público. Eu sinto saudade disso. O desemprego é brincadeira."
Mas de volta à vida de escritor. Pedro Cardoso conta que lê desde sempre, o dia inteiro, muito devagar, porque é disléxico. Não se considera um grande leitor e muito menos um erudito ou um grande conhecedor de literatura. "Gosto de ler, simplesmente. Leio alguma teoria, alguma filosofia, bastante sobre história e muitos romances. Mas sou leigo, repito. E gosto de ser um leitor amador. E, muito provavelmente, eu sou também um escritor amador."
Sua obra faz referências a muitas outras da literatura brasileira e estrangeira, e o título foi escolhido pelo fascínio que sente pelo nome que as coisas têm e pelo poder que ele evoca. A inclusão desses livros todos em sua história foi porque ele quis dar um testemunho de um possível cânone de uma pessoa de seu tempo. "Cada um de nós tem um biblioteca na memória onde estão guardados os livros que lemos e achei que seria interessante para o leitor cotejar o cânone dele com o do meu livro", explica.
A certa altura, o protagonista, que gostava de deitar no chão e passar os olhos pelos títulos na estante, chegou a escalar uma seleção. "No gol: A Pedra do Reino; na defesa: Lucíola, Fogo Morto, Casa Grande & Senzala; no meio-campo: Quincas Borba, Ed Mort, Juca Mulato e Catatau; no ataque: Benjamim e Budapeste. Técnico: Romanceiro da Inconfidência. Escalou também o time adversário, e seleções para os diversos países combinando gêneros e épocas.
Para o personagem, eles tinham uma outra função. "Cada título me dava uma sugestão de pensamento que, por ser breve e concisa, eu conseguia penetrar; ou, melhor dizendo: eu conseguia me deixar ser por ela penetrado; e usufruía, imaginando que estória se conformaria com aquele título."
Pedro Cardoso comenta que a história foi chegando a ele à medida que ele a ia contando para um possível leitor. Tem um certo humor ali, e o ator estranharia se ele não tivesse se manifestado. "O que me guiou foi sempre um desejo de agradar, de entreter, de criar um bom momento para o outro. Escrever é, certamente, um modo de organizar o próprio pensamento. E eu estava precisando organizar o meu", finaliza.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.