O escritor e publicitário Ernani Buchmann lança nesta terça-feira, no Beto Batata, "Onde me doem os ossos" (Get Edições, 72 páginas, ilustrações de Solda, R$ 20).
O livro, o quarto de Buchmann, reúne 23 crônicas que têm como tema Curitiba. Algumas já foram publicadas e aparecem "relapidadas", como diz seu autor, neste novo volume. "Não tive a preocupação de apresentá-las em ordem cronológica", afirma.
Catarinense de Joinville, Buchmann aportou em Curitiba ainda piá, 43 anos atrás. "Canhoto e estabanado", como se define, o cronista avisa logo de cara que é pelo avesso que vê Curitiba, cidade direita, conservadora, como poucas.
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"Eu faço a autocrítica antes de fazer a crítica. Acho que a cidade tem que me dar o direito de falar mal dela, assim como ela tem o direito de falar mal de mim", diz Buchmann.
Dono de estilo afiado, direto, Buchmann traça um belo retrato de Curitiba, comentando desde sua conhecida, mas raramente admitida, incapacidade de fazer um carnaval, até as delícias de seus aperitivos ("e não tira-gostos").
Como escreveu o crítico literário Miguel Sanches Neto, "Onde me doem os ossos" é "um café forte tomado numa noite de inverno num dos pontos da Boca Maldita."
Sobre o livro, Buchmann falou ao Bonde.
Bonde - Em "Onde me doem os ossos", você mostra uma relação conflituosa com Curitiba...
Ernani Buchmann - Não sei se confituosa. Adoro Curitiba, é a minha cidade, me sinto à vontade aqui. Você pode se sentir natural de um lugar mesmo sem ter nascido nele, se você sabe onde se escondem seus segredos. Entre mim e Curitiba, isso acontece muito. Mas eu reclamo muito de Curitiba. Acho que tenho o direito de fazer isso. Nós perdemos muito da capacidade de nos criticarmos. É um certo primarismo dizer "Está falando mal de Curitiba porque não gosta daqui". Eu adoro Curitiba. Para mim, que nasci em Joinville, morei no Rio de Janeiro, em Recife, passei tempos em Brasília, em Minas Gerais, em Roraima, seria hoje muito difícil voltar a viver em outro lugar. Moro aqui por opção. E isso deixo muito claro no livro - reincidi em Curitiba. E Curitiba tem aspectos que são altamente criticáveis. Por exemplo - o carnaval. Quem é ou já viveu fora daqui sabe que o carnaval é uma manifestação popular espontânea. Aqui não é. É preciso dar dinheiro, montar estrutura, botar o som e ainda dizer - "Atenção, sambem!" E ninguém consegue sambar! Já outras coisas critico porque me fazem mal, me doem nos ossos. Por exemplo - o frio. Quem é de fora não sabe o que é o clima curitibano, esta agressão - aqui é o paraíso dos otorrinos, dos reumatologistas. É um clima inóspito, que junta um calor senegalês e um frio antártico quase ao mesmo tempo! Não é possível ver isso sem emitir uma opinião.
Bonde - Com quantos anos você chegou a Curitiba?
Buchmann - Com onze anos. Meu pai veio trabalhar aqui. Então, comecei a fazer o ginásio em Curitiba, no Colégio Santa Maria, depois no Colégio Estadual, e a faculdade de Direito. No final do primeiro ano da faculdade, meus pais se mudaram para o Recife. Ainda fiquei por aqui mais um ano, e depois fui para lá. Voltei logo, me formei aqui. Depois, me mudei para o Rio. Queria fazer carreira no jornalismo - era repórter, fazia matérias para a Folha de Londrina, trabalhava em rádio. Fui para o Rio, mas o que o Jornal do Brasil me ofereceu cobria o custo do meu aluguel. Eu precisava comer. Por causa disso, abandonei o jornalismo - um amigo falou de uma vaga de redator numa agência. Fui, sem conhecer nada da linguagem publicitária, e acabei me dando bem. Voltei para Curitiba e continuei minha carreira publicitária aqui, nos primeiros anos sempre com uma certa insatisfação, um desejo de voltar ao jornalismo. Tanto que sempre mantive colunas em revistas e jornais. A última, que durou até 1995, semanal, foi na Folha - muitas das crônicas que estão no livro foram publicadas nela. Nesse meio tempo, vim exacerbando minha visão da cidade.
Bonde - Que é uma coisa que toma tempo para se formar...
Buchmann - Essa é uma tarefa que não acaba, continua todo dia, porque a cidade é dinâmica. Não sou saudosista, mas às vezes me permito alguma nostalgia de uma ou outra coisa que a cidade perdeu. Mas, por outro lado, ganhou muito. Curitiba perdeu os bares dos anos 50 e 60 e demorou muito para recuperar o terreno. De um, dois anos para cá, é que começaram a surgir os bares na calçada, coisa que a cidade nunca teve, por causa do clima, ou porque o curitibano é muito fechado. Veja só - no Rio de Janeiro, convida-se alguém para ir tomar um chope e, se der fome, janta. Em Curitiba, até há alguns anos, convidava-se as pessoas para sair para jantar, não para tomar um chopinho. Aliás, achar um chopinho em Curitiba era tarefa complicadíssima. Existe bebida mais brasileira que o chope? É uma bebida de turma, ninguém vai tomar chope sozinho, mas com amigos, colegas. Curitiba não valorizava o chope. Outra característica de Curitiba é o grande número de turmas que as pessoas têm - a turma do futebol, a do truco, o pessoal que se reúne num determinado boteco. Todo mundo tem uma ou duas turmas que frequenta, o que é típico de uma cidade fechada - a turma exige um ritual de ingresso. É diferente do Rio de Janeiro, onde você está sentado numa mesa e daqui a pouco já é amigo de infância do cara da mesa ao lado. Em Curitiba, quantos chopes custa para você juntar a sua mesa com a das meninas do lado? Boa parte da noite! Essa alma da cidade, tem que ir trabalhando para conseguir desvendá-la. E não é muito fácil. Conheço muita gente que desiste de Curitiba depois de seis meses, um ano. Me lembro, nos meus tempos de faculdade, às vezes uma amigo do interior ia jantar lá em casa e comentava - "É a primeira vez que entro na casa de um curitibano". E eu respondia - "Não, eu não sou curitibano".
Bonde - Mudou a cidade, com tanta gente chegando de fora nos últimos tempos? Ou mudaram os de fora que aqui chegaram?
Buchmann - As duas coisas aconteceram. Talvez a cidade tenha melhorado pela chegada de muita gente de fora. Quando vim morar aqui, há 43 anos, Curitiba era uma cidade de 400 mil habitantes, hoje é cinco vezes maior. É uma cidade muito conservadora - foi montada a partir de imigrantes da Europa Central. É gente muito fechada. As pessoas que vieram para cá nos últimos anos com certeza ajudaram muito a mudar Curitiba. E as novas gerações curitibanas foram se abrindo um pouco mais para o mundo, viram que era preciso trazer algumas experiências de fora. Pois o curitibano notou que era preciso ter bons restaurantes, shopping centers, boas lojas, livrarias. Praticamente todas as grandes empresas curitibanas sumiram, as grandes famílias de empresários curitibanos venderam suas empresas, deixando as pessoas sem referência. Chegaram muitos estrangeiros, o trânsito mudou. De repende, a cidade ganhou até mesmo um ar cosmopolita. A fórceps, pois, se pudesse, o curitibano ficava aqui neste planaltão escondendo-se do mundo, fugindo dos conhecidos.
Bonde - As crônicas são apresentadas em ordem cronológica?
Buchmann - Não. Fiz uma seleção, tentando dar uma unidade a elas, a partir do título do livro, que remete diretamente a Curitiba. O subtítulo, se houvesse, teria que ser "Crônicas curitibanas". Algumas delas fizeram parte de um livro que fiz em 1987, chamado Cidade de Chuteiras. Lapidei estas crônicas, mantendo aspectos que me agradavam, e estou republicando-as agora. De maneira deliberada, me ironizo em algumas crônicas. É deliberado porque as pessoas podem dizer - "Esse Ernani Buchmann veio de fora para falar mal da gente". Eu faço a autocrítica antes de fazer a crítica. Acho que a cidade tem que me dar o direito de falar mal dela, assim como ela tem o direito de falar mal de mim. Embora ache que a cidade seja muito condescendente comigo, que sou uma figura pública, de certa maneira, já fui presidente de clube de futebol (do Paraná Clube).O que é ruim, mas também é bom. As pessoas já me recebem de outra maneira, e sou muito curitibano neste aspecto - tenho uma timidez galopante, uma dificuldade de entrar em ambientes desconhecidos. Depois que entro, também, fico à vontade, graças a uma certa irreverência que me ajuda. O fato de ser conhecido ajuda a quebrar isso, as pessoas me conhecem.
Bonde - Você também é canhoto...
Buchmann - Ainda sou canhoto, completamente sem coordenação motora. Sou um sujeito que vê o mundo de esguelha. O mundo foi feito para os destros, o canhoto está sempre vendo de canto.
Bonde - Não deixa de ser um modo curitibano de ver o mundo.
Buchmann - É verdade, meio atravessado. Tenho essa coisa de ter me sentido, durante muito tempo, um pouco marginal em relação às coisas mais curitibanas - só o correr do tempo me fez participar mais da cidade e acabar sendo aceito. Porque, um cara como eu, com sotaque catarina, canhoto, sem coordenação motora, derrubando tudo o que vê pela frente, enxergando mal, era um prato cheio para cair na galhofa. Levei muito tempo para conseguir que as pessoas me dessem o respeito. Uma das maneiras por que consegui isso foi ter armado esta estratégia meio de fazer com que a própria irreverência - eu mesmo rir de tudo o que já fiz de errado, cair, tropeçar. É algo que não existe no curitibano, que tem pavor disso, de ser estabanado. O curitibano é um certinho, que não se permite uma visão meio caótica do mundo, que é o que sempre me ajudou a me sentir meio de fora, e ao mesmo tempo meio curitibano.
Serviço
Lançamento de "Onde me doem os ossos", de Ernani Buchmann, com exposição de Solda.
Quando: terça-feira (1/4), às 19 horas
Onde: Beto Batata (Rua Professor Brandão, 678), Alto da XV
Quanto: grátis