São 564 páginas e um preço pouco atraente para os dias de pindaíba que se tem passado no Brasil. Ainda assim, Abusado: O Dono do Morro Dona Marta está há dois meses nas listas de livros mais vendidos de não-ficção.
Explica-se. Se em Rota 66 o jornalista Caco Barcellos contou a história da polícia criminosa, desta vez o público é brindado com a história do outro lado, o dos criminosos "de verdade". E que criminosos: Abusado mostra como se forma um traficante. Aliás, gerações inteiras deles.
O terceiro livro do jornalista custou quatro anos de pesquisa. De expediente dobrado, dividido entre a dedicação ao livro e o trabalho na TV Globo e no Globo News. Quatro anos, segundo o próprio Caco, sem direito a cinema nos finais de semana.
Leia mais:
Conheça o livro gay que fez autora fugir da Rússia após bombar no TikTok
Veja cinco livros para conhecer Adélia Prado, poeta vencedora do Camões
Adélia Prado vence o prêmio Camões, o mais importante da língua portuguesa
Por que livros-jogos voltam a ser mania envolvendo leitor em enigmas e aventuras
O belo resultado final explica tamanho envolvimento. Não é para qualquer um entrar num morro do Rio de Janeiro que é temido pela própria polícia e entrevistar dezenas de moradores, de traficantes, de amigos e parentes deles. Depois, juntar tudo e transformar numa grande reportagem muito bem tramada e escrita como se fosse um romance, ao melhor estilo Cidade de Deus.
Só isso já poderia justificar a grande venda do livro, cujos direitos já foram vendidos para o cinema. Mas, agora, ele tem um atrativo a mais, imprevisto e indesejado pelo autor: a morte de seu personagem principal. No dia 28 de julho, o traficante Márcio Amaro de Oliveira, o Marcinho VP, de 33 anos, foi assassinado no presídio de Bangu 3, onde desde 2000 cumpria pena de 25 anos de prisão.
No livro, o dono do morro Dona Marta é chamado, durante todo o tempo, de "Juliano VP". Como acontece com todos os personagens que estavam vivos na época em que o livro foi escrito, ele é identificado por um codinome. Segundo Caco Barcellos, a intenção era evitar que seus entrevistados fossem vítimas de retaliações, tanto da polícia quanto de traficantes interessados em matá-los.
Mesmo assim, o jornalista sabia que o seu "Juliano VP" era fácil de ser identificado. Foi o traficante quem autorizou que o clip They don’t care about us, de Michael Jackson, fosse gravado na favela, em 1996. Foi ele, também, quem recebeu ajuda financeira do cineasta João Salles, que havia rodado o documentário Notícias de uma guerra particular no morro. Dois escândalos nacionais.
Mas, como declarou em entrevistas recentes, Caco Barcellos não esperava que Marcinho VP fosse morrer por causa do que falou. O traficante já havia passado por situações semelhantes e contava com uma grande rede de proteção.
O fato é que ainda não se sabe por que VP foi morto. A polícia estuda duas hipóteses. O assassino poderia ser Ronaldo Pinto Lima e Silva, o Ronaldinho Tabajara, inimigo de Marcinho desde os anos 80 e que dividia cela com ele em Bangu 3. Ele teria ficado irritado ao saber que fora citado no livro.
A outra possibilidade é que o assassinato tenha sido encomendado por Márcio dos Santos Nepomuceno, um dos principais líderes da facção Comando Vermelho. Chefe do tráfico no Complexo do Alemão, ele também era conhecido como "Marcinho VP" e teria mandado um singelo recado ao chefão do Dona Marta, que também era do Comando Vermelho: "Cala a boca, senão você vai pra vala. Você tá querendo aparecer demais".
Nesse caso, o velho ditado tem utilidade. Definitivamente, o peixe morre pela boca.
Serviço:
Abusado: O Dono do Morro Dona Marta, de Caco Barcellos
564 páginas
Editora Record
R$ 55,00