Não foi só mais uma noite de festival em Londrina. Sexta-feira (3), marca a abertura do Festival de Dança de Londrina com um palco mais vazio de autoridades do que geralmente acontece, em ocasiões em que se enfileiram pessoas no palco. Mas a abertura contou com falas potentes de quem luta pela arte com uma resistência que sempre merece aplausos, em pé.
Danieli Pereira, coordenadora geral do evento, explicou que, neste ano, o festival conta com patrocínio exclusivo da Itaipu Binacional, mostrando que as dificuldades, que no ano passado impossibilitaram a realização de mais uma edição, só foram superadas por esse patrocínio e o apoio da UEL (Universidade Estadual de Londrina) e sua Casa de Cultura.
Num ano em que o Festival de Dança tem como tema a cultura brasileira, a coordenadora do evento foi suscinta e leu para o público o texto que está nos programas do festival, escrito por Renato Forin Jr. Não por acaso, o texto tem por título "Sabedoria Soberania Nacional." Um recado político, sem constrangimento ou meias palavras, para descrever que atravessar o tempo, fazendo cultura, é arte de resistência.
"Abandonar a colônia importada/ tomar banho de sal, de mar, de manjericão, temperar o inimigo, ver o Tio Sam na frigideira/ numa patuscada brasileira", diz o texto de Forin que decide: "rever valores/ do verdadeiro tesouro nacional."
Este tesouro foi resgatado na fala de Marta Dantas, diretora da Casa de Cutura da UEL que, como única parceria de Danieli Pereira no palco do Teatro Ouro Verde, revelou as agruras e a alegrias de fazer arte em Londrina e no Brasil.
Marta, focou seu discurso para destacar o palco do Ouro Verde como "único teatro público de Londrina", descrevendo sua democrática ocupação pelos mais diferentes grupos e linguagens artísticas nas últimas décadas, "não como um teatro da burguesia", como às vezes se diz entredentes, mas como um teatro que acolhe "dos rappers à música erudita".
Uma mensagem tão necessária quanto reveladora da indignação que percorre batalhas, quase heróicas, para por a Cultura em pé na "Cidade dos Festivais".
As vitórias dessa batalha são evidentes a cada vez que o público londrinense, formado em décadas de eventos culturais - com as gerações que frequentam o Ouro Verde desde o fim dos anos 1950 até hoje - se colocam de pé para aplaudir artistas, com entusiasmo pela "sabedoria" da "soberania brasileira", como destaca Forin.
A diretora da Casa de Cultura, encarou as dificuldades de frente ao revelar que hoje essa "casa" trabalha sem orçamento do estado, dependendo basicamente de suas bilheterias. Mas enfatizou seu posiconamento na defesa da "cultura de formação" no lugar do mero entrenimento, deixando claro que "não tem nada contra a diversão e o entretenimento", mas que sua disposição é pela Cultura como Educação, assim mesmo, com letras maiúsculas.
Cessados os discursos de abertura, veio o espetáculo do Balé Teatro Guaíra, parceiro incondicional do Festival de Dança de Londrina. E o palco se transformou num terrítório de êxtases pela potência de uma companhia que dá a medida da maturidade da arte e da cultura do Paraná, patrimônios que não podem ser desdenhados pela falta de recursos públicos, seja na capital ou no interior do estado.
O ESPETÁCULO
O Balé Teatro Guaíra abriu o festival dando do tom da brasilidade que é tema do evento. Com o espetáculo "Contraponto" apresentou duas coreografias: "Anima - Imensidão Adentro", de Allan Keller, e "Castelo", de Alessandro Sousa Pereira.
"Anima", aberta com ritmos brasileiros, é um jornada pelo universo humano "mar adentro", ondas coreográficas que desafiam o palco em movimentos que exploram possibilidades do corpo no chão ou acima dele, em suspensões e escalação de universos tão íntimos quanto universais.
O frenesi do ritmo, dos batuques, do samba, tem um colorido brasileiro alçado à potência planetária, à potência de um mundo contemporâneo no qual a humanidade incorpora os andróides como extensão do corpo, androides em três tamanhos que surgem no palco desde a primeira cena, como a evolução da anima (alma) enquanto movimento que sinaliza a vida.
Sensibilidade e resistência atravessam a montagem que deixa questionamentos, ao mesmo tempo em que extasia pelo forte impacto visual de uma dança-teatro com carga de expressão poética que revela tanto a natureza quanto a criação humana nas profundezas do insconciente, mistura de imagens-linguagens.
A trilha sonora, com ritmos brasileiros, deságua em "Gita", de Raul Seixas, que inspira um despertar da consciência para coisas desse e de outros mundos, tão diversos quanto a criatividade de um balé que contagia o público e chega ao êxtase nos momentos finais. "Gita", que faz referência ao Bhagavad Gita, é , enfim, o "canto do senhor" emprestado a uma "senhora arte".
CASTELO
O espetáculo "Castelo", que encerrou a abertura do Festival de Dança de Londrina, traz um balé inicialmente mais comedido, permeado por uma melancolia antes da explosão de movimentos. É um "balé de grupo", sem solos muito determinados, com bailarinos desenhando movimentos sincronizados que se encaminham para uma espontaneidade surpreendente.
Agrupamentos que se reúnem e se desmancham, corpos que constroem e desconstroem, "edificações" que se encaminham para o acaso de mãos e braços frenéticos. O "castelo" necessário para se proteger de um mundo cheia de exigências, o caos que requer proteção e o inevitável desmanche. O espetáculo "Contraponto" é feito dessas duas coreografias e também de "V.I.C.A. " que já contemplou públicos no Brasil e no mundo.
O público de Londrina, certamente, também deseja ver V.I.C.A. - que estará no Cine Teatro Padre José Zanelli neste domingo (5) - em outra noite de espetáculos que constroem a poética-política dos embates humanos atravessados pela arte.