O historiador e professor Rodolfo Fiorucci, do IFPR (Instituto Federal do Paraná) de Londrina, lançou no último dia 7 o livro "A Imprensa Alternativa na Virada do Século (XX-XXI) – A Revista Caros Amigos". A obra é resultado de uma pesquisa de mais de 500 páginas sobre um dos principais ícones da imprensa alternativa brasileira. Publicado pela editora Nexus, o trabalho revisita a história e o impacto da Caros Amigos, revista mensal que marcou o jornalismo político entre o fim da década de 1990 e os anos 2000.
O estudo percorre o período que abrange o segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e todo o primeiro governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT), analisando 117 edições da Caros Amigos por meio de uma metodologia de análise de discurso. Segundo Fiorucci, esse recorte temporal permitiu examinar como a revista atuou diante de dois governos de orientação política distinta, algo essencial para compreender sua postura editorial: “Eu faço um recorte temático para entender a postura jornalística e política da revista em governos, em tese, diferentes: FHC à direita e o primeiro governo Lula à esquerda”, explica.
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O autor também contextualiza o surgimento da revista, lançada em 1997 por jornalistas e intelectuais que participaram da imprensa nanica nos anos da ditadura militar. Esse histórico conferiu à Caros Amigos um caráter de continuidade da resistência jornalística, agora reconfigurada para enfrentar temas como o neoliberalismo, as políticas sociais e a reacomodação das forças políticas no início dos anos 2000.
Fiorucci entrevistou ex-articulistas e colaboradores que ajudaram a moldar a identidade da publicação, entre eles Carlos Castelo — responsável pelo prefácio do livro —, Milton Severiano, Gilberto Felisberto Vasconcelos e Frei Betto, entre outros. Muitos dos entrevistados, relata o professor, ficaram surpresos ao revisitar a própria produção textual a partir dos dados sistematizados: “Quando você apresenta números e padrões de discurso, eles se admiram. Mas, no geral, ratificam: eram progressistas e conscientes da prática jornalística que exerciam.”
O diferencial também é o ponto fraco
Para Fiorucci, a Caros Amigos foi “o grande ícone da renovação da imprensa alternativa no Brasil” na virada do século. Entre os pontos positivos, ele cita textos densos e de alta qualidade analítica, o retorno das grandes reportagens, com várias páginas dedicadas a temas aprofundados; entrevistas extensas, inspiradas no estilo da revista Pasquim, sem roteiro rígido e com longa duração; e uma postura política assumidamente progressista. “A Caros Amigos, ela tinha um lado, uma postura, e declarava isso. E eu acho mais honesto com o leitor, que a lê sabendo o que ela defende.”
Por outro lado, analisa o autor, esses mesmos elementos ajudaram a criar algumas limitações. O conteúdo altamente analítico, por exemplo, era pouco acessível ao público que a revista afirmava defender e a linguagem densa dificultava o alcance de leitores de menor escolaridade. Além disso, o posicionamento ideológico explícito afastava parte do público e limitava a circulação e, inclusive, influenciou no setor comercial da publicação.
O livro de Fiorucci analisa a publicidade da Caros Amigos, que teve muita dificuldade de se manter nos primeiros anos devido à ausência de anúncios institucionais do governo federal.
“Foram muito poucos, mesmo, sendo possível contar nos dedos. E, quando entra o governo do PT, bomba de publicidade, o que fez com que ganhasse fôlego para durar por muito mais tempo. Então, até na publicidade, a gente percebe que a questão ideológica é muito importante para a manutenção de periódicos no Brasil”, afirma.
A imprensa progressista e a de extrema direita
O livro lançado recentemente é resultado do trabalho de mestrado de Fiorucci, que também analisou, em seu doutorado, o discurso da imprensa de extrema direita. Neste caso, o objeto de estudo foi a revista Anauê!, do movimento AIB (Ação integralista Brasileiro), que tinha sua inspiração no fascismo. A tese de doutorado deu origem ao livro “Estratégias Fascistas em Revista”, lançado em 2021.
Após ter analisado academicamente como funcionam os discursos da imprensa progressista, como a Caros Amigos, e os veículos associados à extrema direita no Brasil, Fiorucci enxerga diferenças marcantes entre elas.
O autor ressalta que a imprensa progressista alternativa adota textos longos, densos, quase sociológicos, com forte presença de análise e contextualização. A linguagem é orientada a leitores com maior escolaridade e prioriza, em seus assuntos, a defesa de minorias e dos direitos sociais e faz críticas ao neoliberalismo - justamente o que cria dificuldade de alcançar o público que pretende defender.
Já na imprensa de extrema direita, tanto a integralista dos anos 1930 quanto a contemporânea, Fiorucci identifica uma linguagem simples, direta e emocional, com foco em temas morais, como família, pátria, propriedade.
Os conteúdos também exploram os medos sociais, especialmente o comunismo, e abusam da disseminação de informações falsas como estratégia de mobilização. Esse modelo, segundo ele, facilita em atingir públicos amplos.
O pesquisador mostra que a retórica da extrema direita pouco mudou desde os anos 1930, quando revistas integralistas propagavam mentiras e alarmes sobre uma suposta ameaça comunista mundial. Fiorucci cita um exemplo da revista ANAUÊ, principal publicação integralista, que afirmava que crianças deveriam “tomar cuidado com comunistas”, em um tom semelhante ao de discursos extremistas atuais.
Para ele, há paralelos claros entre o material produzido na época e o discurso de plataformas digitais contemporâneas, “como Brasil Paralelo”, mas, também nota um flerte de parte da mídia tradicional com narrativas extremadas em determinados períodos.
Interesse pessoal que virou livro
O interesse de Fiorucci pela Caros Amigos nasceu antes mesmo da pós-graduação. Ele conta que conheceu a revista por meio do irmão mais velho, também professor, que assinava a publicação. A familiaridade levou o pesquisador a transformá-la em objeto de estudo no mestrado na Unesp (Universidade Estadual Paulista), campus de Assis.
Essa trajetória faz parte de um percurso acadêmico dedicado à história da imprensa no Brasil no século XX — campo no qual também pesquisou o extremo oposto ideológico ao analisar a imprensa fascista brasileira dos anos 1930, como a revista Anauê!, em seu doutorado na UFGO (Universidade Federal de Goiás).
O livro "A Imprensa Alternativa na Virada do Século (XX-XXI) – A Revista Caros Amigos" está disponível inicialmente no site da Editora Nexus, que trabalha com um modelo diferenciado de repasse de direitos autorais, oferecendo 70% das vendas ao autor. A edição está disponível no formato PDF, mas a versão Epub, voltada para os e-readers (leitores digitais) deve chegar em breve.