Sempre tem alguém disposto a uma conversa descontraída nas portas de botecos, mercadinhos e sobrados das ruas com trânsito calmo entre a Mooca e o Belenzinho, na zona leste de São Paulo. Mas o ar fica pesado quando a pergunta é sobre o vizinho Júlio Lancellotti, 75.
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Xingamentos são frequentes nos diálogos sobre o padre responsável pela paróquia São Miguel Arcanjo, onde concentra o seu trabalho de assistência à população de rua.
"Eu falo desse desgraçado, que passa aqui na frente, não vale bosta! [Ele] encheu isso aqui de morador de rua", diz Robert Freire Friedrich, 56. O comerciante conta que sua lanchonete foi invadida e saqueada há dois meses. Ele viu tudo da janela do andar de cima, onde mora com a família.
Em duas visitas às ruas nos arredores da paróquia, a Folha conversou com moradores, trabalhadores, empreendedores locais e pessoas assistidas pelo padre.
Assim como Friedrich, a maior parte da vizinhança atribui ao pároco responsabilidade pela presença de dependentes químicos, furtos, sujeira e desvalorização de imóveis comuns às cenas abertas de uso de crack, as ditas cracolândias.
Argumentos parecidos com os do vereador Rubinho Nunes (União), autor de um pedido de CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) que mira organizações de assistência à população de rua.
O vereador negou à reportagem que o padre seja o alvo da medida, mas atribuiu ao pároco responsabilidade pelo problema devido a uma atuação que, segundo ele, é indisciplinada e contribui para a permanência dos assistidos em condição degradante.
Questionamentos à conduta moral do pároco também costumam municiar opositores. Há duas semanas a Arquidiocese de São Paulo arquivou denúncia do presidente da Câmara Municipal, Milton Leite (União), que tinha como base um vídeo que retrata um homem se masturbando.
É a segunda vez que o material, sem autenticidade comprovada, é utilizado. Em 2020, o então candidato à prefeitura Arthur do Val, o Mamãe Falei, fez denúncia idêntica à Igreja Católica, que não encontrou indícios de crime. Nunes e Mamãe Falei foram do MBL, criado em 2014 para defender o impeachment de Dilma Rousseff.
Nas duas conversas que teve com a reportagem sobre o que seu detratores dizem, Lancellotti resumiu seu sentimento em uma frase. "Eu me sinto um padre cancelado."
Laura Muller Machado, coordenadora do Núcleo População em Situação de Rua do Insper, defende a estratégia de Lancellotti. Ela diz que a aproximação feita por ele, com base no afeto, é o único meio de resgatar quem está à margem.
Afirma que não é o padre o responsável pela explosão da população de rua, fenômeno crescente no mundo que ela vê como uma epidemia de rupturas nos relacionamentos. "Antes [da pobreza e da dependência química], há um trauma muito forte na relação dessa pessoa com a família", diz.
Faltam, porém, políticas públicas que integrem o trabalho das diversas organizações que atuam nesse segmento, além de estudos para medir a efetividade desse trabalho, diz Machado. Lacunas que aumentam a insatisfação popular. "O trabalho do padre Júlio é importante, mas é uma gota no oceano."
Vivendo nas calçadas desde 2016, o ajudante de pedreiro Rodrigo Ribeiro, 40, exemplifica esse relato. Saiu de casa para dar fim às brigas com a família. Da maconha ao crack, usou todo tipo de droga. "Hoje eu estou limpo", conta.
O café da manhã oferecido na paróquia e o almoço em um centro de acolhimento da prefeitura o "fortalecem" nos dias em que procura algum bico. Emprego, porém, só com endereço fixo. "Eu precisava de vaga num albergue, tomar banho, trocar de roupa e guardar minhas ferramentas", diz, apontando para a mochila.
Admiradores também estão presentes na vizinhança, apesar de em menor número.
Bárbara Santos, 28, inaugurou há poucos meses um sofisticado salão de beleza onde atende a clientela de alta renda do entorno. Convive diariamente com pessoas que dormem na porta.
"Eu trabalho e moro muito perto [da paróquia] e não atrapalha em nada a minha vida", diz a empresária. "Alguns clientes ficam com medo, mas se eu tivesse de escolher, eu não gostaria que esse trabalho parasse porque é importante para as pessoas que precisam de ajuda."
Apesar de conviver com o problema, a jovem empresária não está no grupo que, segundo o psicanalista Christian Dunker, encontrou nas manifestações de ódio uma fuga para os três estágios de sofrimento psicológico que acometem quem se depara com a miséria e a degradação nas ruas: angústia, culpa e medo.
Dunker considera que a postura de herói de tragédia grega de Lancellotti, consciente de que está condenado ao fracasso, e seu discurso de combate à aporofobia -a aversão aos pobres- fazem dele um personagem que confronta valores contemporâneos, como o desejo de sucesso pessoal.
"É como se algumas pessoas se perguntassem: como assim os desejos dele não estão ligados ao sucesso? Isso é um dilema", diz Dunker. "[As denúncias contra o padre] querem mostrar que sua verdadeira intenção é opaca, que os desejos mais nobres procedem da nossa humanidade."
Diretor de Programas do Instituto de Estudos da Religião, o teólogo e pastor Ronilso Pacheco classifica o desconforto gerado por Lancellotti como coerente com uma sociedade de indivíduos que moldam a religião aos valores mais radicalizados do capitalismo, em especial a meritocracia.
"Essa parcela não acha justo que pessoas que vivem sem trabalho e regras tenham acesso aos direitos humanos", comenta o teólogo.
Política é elemento central para entender a rejeição a Lancellotti. O padre está assumidamente no campo progressista, contrariando a inclinação majoritária da vizinhança conservadora.
Na seção eleitoral da Mooca, dos 120 mil votos válidos, quase 70 mil (58,5%) foram para o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), que perdeu a eleição nacional para Lula (PT) em 2022.
Professor de gestão de políticas públicas da USP, Pablo Ortellado estuda a polarização no Brasil. Ele diz que o padre é uma típica figura capturada pelos dois espectros. Enquanto a esquerda o associa à sua visão de mundo e o admira por isso, a direita o vê com desconfiança.
"A questão da cracolândia é incômoda e uma CPI é uma forma de dizer que este é um problema criado pela esquerda", avalia Ortellado.
Ressentimentos com a política levam a outra crítica frequente ao padre: a de que a função da igreja tem sido desvirtuada pela sua militância.
É comum que atribuam às ligações políticas do padre poderes superiores aos dos seus pares.
José Carlos, 65, nasceu no bairro e, na infância, foi coroinha na São Miguel Arcanjo. Acusa o pároco de ter afastado a comunidade da igreja, eliminando tradições e fazendo da paróquia um palanque político.
"O que incomoda é a política", reclama o morador. "Eu gostaria de saber o porquê dessa diferença em relação a outros padres."
Lancellotti tem, de fato, autoridade comparável à de poucos, mas isso em nada tem a ver com sua fama, segundo a Arquidiocese de SP. São suas funções na estrutura da Igreja Católica que conferem a ele certa autonomia.
Além de responsável pelo seu território paroquial, Lancellotti é vigário episcopal para a Pastoral do Povo da Rua. O cargo faz dele a pessoa de confiança do arcebispo Dom Odilo Scherer para coordenar as ações voltadas aos fiéis em situação de rua em toda a área da Arquidiocese, que compreende aproximadamente o centro expandido da capital.
Na tarefa confiada a ele, portanto, o vigário faz as vezes do bispo.
Especialista na hagiografia, ramo da história da igreja que descreve a vida dos santos, Lancellotti é um padre mais tradicional do que pensam seus críticos, afirma o coordenador do secretariado de pastoral da Arquidiocese, padre Tarcísio Marques Mesquita.
Embora seja mais frequentemente visto nas reuniões diárias com moradores de rua para distribuição de doações no pátio com bancos de madeira e imagem de bronze da Irmã Dulce, Lancellotti celebra missas nas quais faz questão de manter ritos litúrgicos antigos, como a queima do incenso.
Mesquita, 64, é confidente do colega de batina há 43 anos. Vez ou outra, sai da sua paróquia no Tatuapé para buscar o amigo no Belenzinho -Lancellotti não dirige- para um café com bolo.
Às vezes, a viagem é esticada até o centro, para distribuição de doações. "Esse é o tipo de passeio que o Júlio pede para fazer."
Mesquita enxerga o amigo como incompreendido por grande parte dos fiéis e isolado até mesmo entre o clero devido às falas duras, que refletem sua angústia e indignação.
"Ele trabalha há anos com um problema que, em vez de melhorar, recrudesce", diz. "Acho que é preciso melhorar o diálogo, mas é difícil dialogar com gente que abre a janela do carro, grita 'padre veado', e vai embora."