"Com o diagnóstico do autismo, comecei a fazer intervenções com especialistas e, depois disso, minha vida deu uma boa guinada. Consegui até fazer coisas que nem imaginava ser capaz". O relato é de Michele Guerreiro Ramos, secretaria de Cultura de Sapopema (Norte) e uma das 17 coautoras do livro 'O Autismo Como Você Nunca Leu'. Em entrevista ao Portal Bonde, ela conta como a descoberta do TEA (Transtorno do Espectro Autista) foi a motivação necessária para "reerguer sua vida" e devolvê-la ao mercado de trabalho, após uma década de depressão e afastamento social.
Com o nascimento de sua segunda filha há 11 anos, Ramos relembra que, além de uma depressão pós-parto profunda, outros "males mentais" surgiram em decorrência do quadro clínico. Isso fez com que ela, aos poucos, fosse se afastando do mercado profissional, mesmo com diversas especializações no currículo.
"Na época, estava trabalhando como professora, mas nunca me engajei em nenhum trabalho. Tenho especialização em inglês e formação em publicidade e propaganda, mas saí e parei por conta dessa depressão profunda", diz.
Ramos não sabia naquele momento, mas o autismo, que a acompanhava ao longo de toda a sua vida às escondidas, também tinha sido herdado por seus dois filhos. Foi por meio do diagnóstico das crianças que a verdade sobre a sua própria condição veio à tona.
PRIMEIRO DIAGNÓSTICO, O DO FILHO
No ano de 2019, em meio ao caos de incertezas e inseguranças da pandemia de covid-19, ela recebeu uma informação que mudou a vida da sua família completamente. Próximo de completar 2 anos de idade, seu terceiro e mais novo filho foi diagnosticado com autismo tipo 2 de suporte e TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade). No contexto de isolamento, Ramos relata que se viu perdida em meio à falta de opções em Sapopema e o medo de expor seu filho ao vírus que assustava o mundo naquele momento.
"Comecei a estudar sobre o autismo depois do diagnóstico dele. Não tinha suporte na minha cidade e estávamos na pandemia. Fiquei bem perdida. O médico tinha pedido para ele começar a fazer a intervenção em uma clínica de Londrina. Assim que começamos a fazer, ele pegou covid. Aí veio toda aquela culpa. Eu ficava me perguntando o que fazer", desabafa.
O suporte que ela tanto procurava foi dado pela APAE (Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais) de Sapopema, que passou a instruí-la sobre as características do autismo e as melhores formas de conviver com ele.
MAIS UM MEMBRO DA FAMÍLIA DIAGNOSTICADO
Abastecida de conhecimento, a mãe começou a enxergar na filha do meio indícios de que o autismo estava presente em mais de um membro da família.
"Demorou um pouquinho para investigarmos o caso dela. Ela já fazia terapia, mas a situação era muito mais complexa. Isso porque ela é uma menina acima da média, muito inteligente. Porém, essa alta habilidade não é algo legal. As pessoas falam: 'Nossa, é um gênio!', mas não é assim. Ela é bem direcionada para arte e desenho, porém odeia completamente todas as outras coisas. Estudar, por exemplo, é muito desafiador", conta.
ORIGEM GENÉTICA DO TEA
Foi somente com o laudo de seus dois filhos em mãos que Ramos olhou para si própria como uma possível origem genética do TEA. O histórico da família e os laudos passados deixavam uma "pulguinha atrás da orelha" cada vez maior.
"O neurologista dos meus filhos explicou que o autismo tem causas multifatoriais, mas que a maioria dos casos é genética. Minha família tinha muitos casos e eu tive depressão e transtorno alimentar, já fiz muitos tratamentos. Apesar de não me reconhecer, no ano passado recebi o diagnóstico, depois de um longo período de investigação", compartilha.
ATIVISTA DA CAUSA
Depois da descoberta, Ramos passou a aprofundar cada vez mais os estudos na área até chegar ao ponto de virar uma ativista. Por meio de palestras e posts nas redes sociais, ela foi reconhecida como referência do assunto no município e incentivada pela "comunidade TEA" a se candidatar ao cargo de vereadora.
"Cheguei a me candidatar a vereadora porque precisavam de alguém da causa que representasse a nossa situação aqui no município. Eu não queria, mas fiz isso. Para mim, foi bem desafiador conseguir ir à casa das pessoas e conversar com elas. Não sou tímida, mas esse ato de visitar, para mim, era muito invasivo. Por fim, não fui eleita, graças a Deus", relembra, aos risos.
Ao "descartar" a candidatura, Ramos encontrou no convite de comandar a secretaria da Cultura de Sapopema uma forma de oferecer à comunidade TEA uma sociedade mais acessível e compreensível, promovendo ações para instrução e acessibilidade na rotina de quem - assim como ela e seus dois filhos - sofre com os impactos do transtorno diariamente.
AUTISMO FORA DOS ESTEREÓTIPOS
O preconceito é normalmente acompanhado por características visuais, pois esse é - comumente - o primeiro contato que a maioria das pessoas tem com algo. No autismo, a associação direta é aquela vinculada às pessoas diagnosticadas com superdotação ou nível 3 de suporte.
Ramos é a prova de que a classificação visual falha ao reconhecer uma pessoa diagnosticada com TEA. Classificada no nível 1 de suporte, ela descreve como a falta de características visuais é motivo suficiente para as pessoas questionarem seu laudo. Familiares e conhecidos frequentemente marcam seu trabalho de reconhecimento e ativismo como forma de "bancar a espertalhona" e " se aproveitar" da situação.
"É desafiador porque as pessoas também não acreditam que eu seja autista. Para elas, o autista é aquela pessoa com uma característica estereotipada, seja do gênio ou daquela pessoa completamente isolada. Nós [tipo 1 de suporte] somos vistos como espertalhões, como as pessoas que estão se aproveitando da situação. Essa invalidação, inclusive, não é só da comunidade ou na sociedade, mas sim dentro da nossa família", expôs.
PIONEIRISMO NO LIVRO
Devido ao seu trabalho de ativismo nas redes sociais, Ramos foi a primeira mulher a ser convidada por Elizangila Leite - idealizadora e responsável - para contar sua trajetória de vida em um dos capítulos do livro "O Autismo Como Você Nunca Leu". Juntamente com outras 16 coautoras, Ramos abriu mão de sua intimidade e compartilhou a história de como se entendeu autista e as dificuldades que decorrem do laudo, no capítulo intitulado "Depois do diagnóstico: o que mudou e o que (ainda) dói?".
"Desde o início contei características da minha infância, adolescência, a saga do diagnóstico das crianças e como descobri o autismo. Porque é um espectro, ele tem muitas facetas. Por exemplo, descobri essa questão do autismo feminino e o quanto foi difícil pra mim me perceber como pessoa dentro deste espectro. Tive um preconceito com relação a isso, porque a gente se acha meio super-herói. E, no fim, precisei me perceber dentro do transtorno para assim poder seguir em frente", diz, descrevendo a sua participação.
Descobrir o autismo não o resolve, é apenas um passo à frente para reconhecer os limites pessoais e as barreiras que ele impõe. Ao longo de uma vida, o autismo sem diagnóstico recebe outros nomes, como a autodepreciação do achar-se "esquisito" e a falta de pertencimento e descolocamento social.
"Descobrir o autismo mudou tudo. Apesar de continuar tendo prejuízos, agora sei onde buscar ajuda. Me achava esquisita e não conseguia me encaixar em nenhum grupo. Hoje, tenho uma explicação que antes não conseguia entender", desabafa.
Para ela, cada um que precisa conviver com o TEA carrega dentro de si as dores que dele derivam. "Doi ser autista, mas precisei aprender a lidar com isso. Invalidação social, calor excessivo e barulho são algumas delas. Até falar ao telefone chega a ser um incômodo. Mas isso é pessoal, cada um tem suas próprias características. Basicamente, foi sobre isso que falei em meu capítulo", afirma.
OS BENEFÍCIOS DE DESCOBRIR OS PORQUÊS
Pela perspectiva médica, a volta de Ramos ao mercado de trabalho e a retomada de sua vida social após o diagnóstico do autismo está amplamente ancorada com os estudos do TEA. De acordo com a Elizangila Leite, mestra em TEA pelo ISEP (Instituto Superior de Estudos Psicológicos) da Espanha e organizadora do livro, o reconhecimento do autismo não acaba com o sofrimento, mas dá início aos processos de adaptações na vida da pessoa.
"A importância do diagnóstico é entender seus porquês. Por exemplo: 'por que trabalhar é difícil para mim?'. Entender isso faz você começar a traçar estratégias para não sofrer tanto. Isso irá levar a uma melhora de vida - como aconteceu com a Michele Ramos. Porém, o sofrimento nunca irá acabar, o espectro não sai de você", explica.
A visão de Leite é ancorada pelo DSM (Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, traduzido do inglês), cartilha técnica criada pela Associação Americana de Psiquiatria ou APA (American Psychiatric Association) que classifica as principais características do transtorno. No critério D, o texto diz que "esses sintomas causam prejuízos clínicos significativos no funcionamento social, profissional e pessoal ou em outras áreas importantes da pessoa".
Na necessidade de ajustar sua vida, Leite exemplifica como o autismo adaptou a sua relação de médica com o ambiente hospitalar. "Há três anos não consigo entrar em um hospital. Foi com a pandemia que descobri que conseguiria trabalhar online. Sem isso, estaria desempregada ou sofrendo de burnout", supõe.
AUTISMO FEMININO E A ORIGEM DO LIVRO
Questionada sobre o que motivou o livro, que é focado na perspectiva feminina, Leite conta que o seu diagnóstico de autismo com 32 anos evidenciou a diferença histórica entre homens e mulheres com o TEA. Segundo o censo de 2022, cerca de 1,5% população masculina brasileira foi diagnosticado com autismo. Em comparação, a porcentagem de mulheres é de 0,9%. Trazendo estes dados para Londrina, a população masculina com TEA é de 1,8%, enquanto a feminina mantém os 0,9%.
"O autismo dentro do espectro feminino é muito mais invisível. Historicamente, os testes e diagnósticos eram voltados aos meninos. Até os anos 2000 não existia o diagnóstico para mulheres. Ele era majoritariamente masculino, a não ser que ela tivesse muitas comorbidades. Eu sou autista, mas só fui diagnosticada com 32 anos, após o diagnóstico do meu filho", descreve.
FATORES NEUROBIOLÓGICOS
De acordo com a especialista, uma das razões para esta ocultação feminina baseia-se em fatores neurobiológicos. O cérebro feminino possui uma hiperconectividade maior que o masculino, isso faz com que a mulher consiga ocultar seus sentimentos e impulsos de maneira mais efetiva.
"Só o fato de você nascer mulher e ter o par de cromossomos XX vai influenciar em fatores neurobiológicos. Não estamos falando de sexualidade, mas sim da parte biológica. A gente aprende a camuflar muito mais do que os meninos. A hiperconectividade no cérebro da mulher faz com que elas dominem mais essa área da camuflagem. Ao não demonstrar o sofrimento ela vai arrastando isso até chegar ao ponto em que colapsa", justifica.
Leite pontua que, frequentemente, este ponto de colapso ocorre a partir dos 25 anos de idade, quando a mulher não consegue mais mascarar esse turbilhão de sentimentos.
Sem querer ser técnica, a proposta de Leite ao desenvolver o livro era dar espaço para que outras mulheres pudessem compartilhar suas experiências e compará-las entre si - identificando diferenças e semelhanças. O processo para selecionar as coautoras foi extenso, ao todo, foram reunidos 450 perfis. Leite optou pelas mais interessantes.
"Queria que os leitores entendessem o técnico por meio dessas histórias, seguindo uma linha narrativa entre os capítulos. Muitas delas trabalham, são mães e autistas, como eu. No livro, temos histórias maravilhosas como a da Michele e da Simone, que está passando por um processo de quimioterapia", enfatiza.
MAIS AUTISMO NO LIVRO
O livro 'Autismo Como Você Nunca Leu' já está disponível para compra no formato digital. Em palestras e para seus pacientes, Leite distribui uma cópia física do texto como uma forma pessoal de "obra social".
*Sob supervisão de Bruno Souza, repórter do Portal Bonde