A declaração da organização radical Talibã de que vai respeitar os direitos das mulheres "dentro do marco da lei islâmica" diz pouco sozinha. Que a perspectiva é de piora dramática na vida das afegãs, está óbvio. O que não está claro é de que maneira isso vai acontecer.
A lei islâmica, também chamada de sharia, é entendida de maneira bastante diferente ao redor do mundo. É uma espécie de marco moral com base no Alcorão -o livro sagrado do islã- e nos ensinamentos do profeta Maomé. De certo modo, como a Bíblia inspira algumas Constituições.
"A questão principal é de que maneira a sharia vai interagir com outros sistemas legais", diz Vanda Felbab-Brown, analista sênior do Brookings Institution. Ela pode influenciar uma nova Constituição ou ser usada no lugar dela, por exemplo. A lei islâmica pode também ser aplicada em apenas algumas esferas, como casamento e herança, sem determinar a esfera penal.
Felbab-Brown cita exemplos de como países de maioria muçulmana entendem a sharia. De um lado, estão países mais abertos, como a Indonésia, onde mulheres têm acesso à educação e ao mercado de trabalho. A Constituição atual do próprio
Afeganistão, aliás, já inclui a lei islâmica. No outro extremo, há países como o Irã e a Arábia Saudita, mais conservadores.
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Quando governou o Afeganistão de 1996 a 2001, o Talibã implementou uma versão bastante radical e violenta da sharia -incluindo o apedrejamento de mulheres até a morte, em casos de adultério. Sob o entendimento do Talibã do que é a sharia, mulheres não podiam estudar, trabalhar, usar salto alto, trabalhar, usar salto alto, mostrar seu rosto em público e andar sozinhas na rua. Mas a organização, que acaba de voltar ao poder no país, tem dado alguns sinais de mudanças.
Felbab-Brown afirma que desta vez o país pode se parecer mais com o Irã do que com o Afeganistão dos anos 1990. Ou seja, pode ter um sistema autoritário e opressor, mas com importantes concessões. Por exemplo, permitindo a educação básica de mulheres e alguma participação política.
Há diversas maneiras de entender essas transformações. Um ponto básico é que o islã não é uma religião monolítica. Como o cristianismo e o judaísmo, aliás. A interpretação que um mesmo grupo faz do islã tampouco é estática. Mais uma vez, como no caso de grupos cristãos e judaicos.
O Talibã tem origem no movimento religioso chamado deobandi, surgido no século 19 em escolas religiosas na Índia. Vem daí o nome Talibã, que significa "estudantes". Outras facções radicais bastante conhecidas, como o Estado Islâmico e a Al Qaeda, têm outra genealogia: seguem o wahhabismo, surgido no século 18 no que é atualmente a Arábia Saudita. Em comum, têm uma visão tradicional, literal, fundamentalista do islã.
Depois de sua experiência governando o Afeganistão de 1996 a 2001, e depois também de duas décadas lutando contra as forças americanas, o Talibã sinaliza que pode ter revisto algumas de suas posições, como a da segregação extrema entre homens e mulheres. Ainda não está claro, por outro lado, se a facção mudou em algo a sua infame interpretação do apedrejamento de mulheres.
A lei islâmica prevê, em algumas vertentes, essa punição para casos de adultério. No passado, porém, autoridades religiosas puseram tantos entraves -por exemplo, a exigência da presença de quatro homens de moral impecável como testemunhas- que ela foi raramente usada. O Talibã dos anos 1990 facilitou esses apedrejamentos. Mas pode decidir, agora, dificultá-los.
Outro ponto importante é que nem mesmo os membros do grupo concordam sobre o que a sharia significa na prática. Há alas mais voltadas à ideologia, segundo Felbab-Brown, enquanto as mais pragmáticas insistem que o Talibã precisa mudar para poder se relacionar com a comunidade internacional.
Isso talvez explique a rapidez com que o porta-voz da organização radical foi a público declarar que respeitaria os direitos das mulheres -entre outras coisas, provavelmente como uma maneira de preservar o acesso a algum capital estrangeiro e canal diplomático.
Para determinar coisas como educação, participação política e vestimenta das mulheres, "os debates internos vão ser bastante intensos, desafiadores e problemáticos", diz a analista do Brookings.
Felbab-Brown narra uma história para ilustrar as divergências dentro da organização que volta a controlar o Afeganistão. Em 1996, quando o Talibã tomou Cabul, alguns membros mais radicais começaram a queimar aviões; seguiam a visão antimodernidade típica do movimento deobandi. Naquele momento, o mais pragmático mulá Mansur -que mais tarde liderou o Talibã, substituindo o mulá Omar- correu até o aeroporto para interrompê-los.
Deve haver, também, alguma variação entre como a sharia vai afetar as áreas urbanas e rurais e as distintas regiões do país.
É o que analistas têm notado, nos últimos anos, ao estudar as porções do país que já estavam sob o controle da facção radical. Em algumas delas, o Talibã proibiu as novelas. Em outras, não. A mesma coisa vale para a educação feminina: foi proibida em partes, permitida em outras ou censurada de maneiras distintas.
"Tudo vai depender de como cada comunidade local reagirá contra as regras que o Talibã impuser", afirma Felbab-Brown. E do quanto os habitantes de cada parte do país vão concordar ou não com a interpretação que o grupo faz da sharia. "O Talibã não é uma força invasora vinda de Marte. Eles vêm das comunidades locais, muitas das quais já praticam a sharia."