De uma coisa os leitores de quadrinhos não podem reclamar. O ano ainda nem acabou e as bancas, lojas especializadas e livrarias estão cheias de bons lançamentos, para todos os gostos, desde a reimpressão de ''Reino do Amanhã'' (Panini Comics), passando por ''Mundo Pet'', de Lourenço Mutarelli (Devir), até ''A Metamorfose: de Franz Kafka'', adaptado por Peter Kuper (Conrad). E a editora Companhia das Letras traz este mês ao Brasil um dos álbuns mais esperados da década: ''À Sombra das Torres Ausentes'', obra do jornalista e quadrinhista Art Spiegelman, autor do premiado romance gráfico ''Maus'' e que não produzia um livro desde o início dos anos 90.
Will Eisner mostrou porquê os quadrinhos podem ser considerados arte. Robert Crumb exaltou o poder contestador da linguagem. Mas foi Spiegelman que calou os risos de quem ainda achava que os infantis ''gibis'' não poderiam ser tão influentes, densos, consistentes e poderosos como meio de comunicação.
Arthur Spiegelman, natural de Estocolmo, Suécia, nasceu em 1948 e é filho de judeus, sobreviventes dos campos nazistas de Auschwitz. O autor cresceu nos Estados Unidos, onde estudou no State University of New York e desenvolveu seu talento como escritor, desenhista e designer. Depois de um período ilustrando envelopes de cartões colecionáveis, Spiegelman sentiu-se impulsionado pelo crescimento da cena underground dos quadrinhos norte-americanos (sob forte influência dos trabalhos de Harvey Pekar e Robert Crumb). Ele decidiu, então, publicar material adulto, mais engajado e em tom provocador, em ''The Complete Mr. Infinity'', de 1970.
Já casado com uma editora, Françoise Mouly, em 77, começou a trabalhar no que seria sua obra máxima, capaz de mudar o rumo das histórias em quadrinhos em todo o mundo. No início de 80, ele fundou a revista anual ''Raw'', que abrigava produções independentes de novos talentos e anos mais tarde, mais precisamente em 1986, o autor lançou ''Maus'', que abriu caminho para obras mais adultas nos quadrinhos de super-heróis, como ''Watchmen'' (Alan Moore) e ''O Cavaleiro das Trevas'' (Frank Miller), em 87.
''Maus'' narra, do ponto de vista do autor, em tom autobiográfico, a luta pela sobrevivência dos judeus (ratos), diante dos nazistas (gatos). O formato de livro, a narrativa fluente com arte apenas em nanquim, mais tosca (para contrariar a arte ''bonitinha'' das histórias de super-heróis), e a autenticidade do romance gráfico cativou fãs de quadrinhos, cinema, críticos, escritores, desenhistas e toda a comunidade cultural da época. Em 91, Spiegelman lançou ''Maus II'' e, depois de ganhar o prêmio Pullitzer, afastou-se da nona arte e passou a dedicar seu tempo para artigos e desenhos da revista ''New Yorker''. Recentemente ele participou, a pedido da mulher, da coletânea ''Little Lit'', lançada no Brasil também pela Companhia das Letras.
Um incidente em especial trouxe de volta o inquieto artista para as pranchas de quadrinhos. Os atentados de 11 de setembro de 2001 também abalaram o autor, que assistiu de perto à queda das Torres Gêmeas, na rua de sua casa, em Manhattan. Depois disso ele decidiu escrever artigos mais contestadores e levou seus relatos para as páginas do àlbum ''À Sombra das Torres Gêmeas'', que compila suas produções do semanário judaico Forward de Nova Iorque e do jornal alemão Die Ziet, a partir de 2002.
A obra, que já vendeu mais de 2 milhões de cópias só nos Estados Unidos, faz críticas ácidas ao presidente Bush e sua investida contra o Iraque, além de refletir a paranóia que tomou conta dos norte-americanos. O formato escolhido pelo autor, em páginas duplas, faz menção às primeiras histórias em quadrinhos produzidas no final do século XIX e é claramente inspirado em clássicos como ''O Menino Amarelo'', ''Os sobrinhos do Capitão'' e ''Krazy Kat''.
''À Sombra das Torres Ausentes'' chega ao Brasil com papel cartonado, em 44 páginas, no formato 25,4 x 35,6 cm. O álbum pode ser encontrado em livrarias e lojas especializadas com o salgado preço de R$ 78, mas vale cada centavo, ainda mais vindo de um autor tão talentoso que não publicava algo do tipo há mais de dez anos.