Cartunista fala sobre sua atual fase nos quadrinhos e comenta também o burburinho causado pela opção de se vestir de mulher
''Estou na idade em que as pessoas começam a fazer memórias.'' É assim que Laerte explica o atual momento em que vive nos quadrinhos, em especial com o lançamento de seu novo álbum, ''Muchacha''. O cartunista falou com a FOLHA durante sua recente passagem pela 1a. Bienal do Livro do Paraná, em Curitiba, e antes de autografar seus livros em encontro na Itiban Comic Shop, também na Capital.
Na conversa, o artista, que celebra 37 anos de carreira em seus 59 de idade, comentou ''Muchacha'' e explicou a razão por ter abandonado seus personagens e também a opção pelo crossdressing, ou seja, a vontade se vestir como mulher. Confira o bate-papo:
Folha de Londrina: De onde saiu a iniciativa de publicar ''Muchacha''?
Laerte: Tinha negociado com a Companhia das Letras quando estava produzindo a história para o caderno ''Ilustrada'' (da Folha de S. Paulo). Essa história da ''Muchacha'' sucede uma série que estava fazendo sobre memórias da televisão, que foram publicadas no álbum ''Laertevisão'' (publicado pela Conrad Editora). Quando terminei, dei o ciclo de memórias pessoais encerrado. Mas eu gostei de ter acessado esse mundo dos anos 50, da televisão. Então comecei a investigar, a trabalhar esses seriados de ação que tinham na época pré-videotape...
Como quais?
Falcão Negro. O Falcão Negro é a referência. O Capitão Tigre é uma espécie de Falcão Negro. Então fui criando outros personagens e aos poucos fui sentindo que aquilo era uma história. Daí passei a construir um roteiro fora da intenção inicial, que era só curtir um pouco.
Você disse que tinha encerrado um ciclo de memórias com o ''Laertevisão'' mas depois se empolgou e prolongou esse ciclo com ''Muchacha''. Sente ter encerrado esse ciclo agora?
Estou na idade em que as pessoas começam a fazer memórias. É interessante fazer memórias quando você chega aos 60 anos, tem muito material. Não sei, as coisas que vivi nesse mundo do passado tem elementos que ajudam a pensar o presente.
Que exemplos você pode dar sobre isso?
É simples quanto comparar as coisas. Hoje quando você pensa em seriado de televisão você pensa no modo americano de produzir, com 20 e tantos episódios, cumprir uma temporada, negociar essa temporada... Existe uma tradição firmada neste território de ficção que permite as pessoas trabalharem em cima de um terreno sólido. E naquela época não, era tudo improviso, tudo uma invenção a partir de quase zero. Isso faz a gente pensar que hoje em dia a gente pode estar numa fase zero, num terreno zero em relação a alguma coisa. Do que a gente vai lembrar daqui a 30 ou 40 anos que tinha hoje ou não tinha hoje? É um exercício legal de fazer. A televisão existe ainda, a televisão é um elemento comum, as pessoas assistem muito. Ela se tornou uma presença absolutamente total. Ter televisão é como ter uma casa.
Muito se fala sobre a ruptura de sua obra a partir de certo momento, especialmente com relação aos personagens, que você teria se cansado deles. Que fase é esta que está vivendo?
Eu cansei dos personagens. Acho que cansar não é a palavra certa. Senti que existia um ciclo que acabou, está cumprido. Fecha um período que me deu muito prazer, tenho muita satisfação pelo trabalho realizado nesses anos todos. Senti que está esgotado, já disse o que tinha que ser dito ali e senti a necessidade de uma busca nova. Parti para essa busca há uns cinco ou seis anos e estou nela, estou na estrada.
Não poderia deixar de tocar neste assunto. O crossdressing faz parte dessas mudanças, desta fase criativa que vive? Li que faz parte também de uma investigação sobre o universo feminino. Que conclusão chegou até agora?
Também ainda não concluí nada (risos). A conclusão que chego é que é uma delícia. É um exercício de liberdade maravilhoso. Abrir a cabeça para esse tipo de possibilidade, compreender a vestimenta como algo que você pode manipular e conduzir de acordo com suas necessidades e fantasias e não apenas se submeter aos códigos de gêneros, essa descoberta é uma delícia incrível.
Você já tinha pensado nisso no passado?
Já, mas de maneira confusa e obscura. Neste momento apenas cheguei à conclusão de que é possível mexer com roupas, sair com saias, sapatos e brincos e coisas assim.
Quando lembro desse assunto sempre me vem à cabeça Ed Wood e como ele enfrentou o estranhamento de se vestir como mulher. Esse estranhamento também acontece com você?
Sim, um pouco. Não tenho sentido hostilidade muito grande. Tenho sentido estranhamento e um pouco de constrangimento. E uma certa surpresa, uma insegurança grande por parte das pessoas. Não estou completamente seguro também, vou ficando à medida com o tempo. Quando saio por aí vestido dessa forma, fico sempre de antena ligada. Muitas pessoas que me observam querem fazer uma crítica mas não sentem muito habilitadas a fazer essa crítica, existe de tudo...
Essa liberdade tem trazido benefícios na forma como cria, na sua profissão?
Tem. Aí já é uma ligação um pouco mais abstrata. É uma coisa ligada com o estado de espírito de quando eu trabalho, que não dá pra definir direito.
E o que pensa em fazer depois de ''Muchacha''? Já tem alguma coisa preparada?
Vou fazendo um pé depois de outro. Não consigo mais fazer planos balzaquianos. Digo isso porque ele (Balzac), com 20 e poucos anos, teve a visão do que seria o trabalho da vida inteira dele. Escreveu, planificou, dividiu em segmentos e antes de escrever os 100 e poucos novelas, romances e contos, planificou tudo. Sou absolutamente ao contrário. Nunca sei o que vou fazer. Tenho um trabalho com o Otto Guerra, de animação, que mudou completamente, era pra ser a história dos Piratas (do Tietê) e agora vai ser uma baseada na história geral das tiras que faço...
Tem alguma história que você consegue lembrar agora na qual gostaria de ter seu nome assinado embaixo dela?
Quase todas as que eu gostei (risos). Na verdade o meu trabalho é uma tentativa de assinar as histórias que eu gostaria de ter assinado. Não estou me autochamando de plágio ou plageador, acho que minha motivação principal, e desconfio que é o da maioria dos artistas, é a outra arte, a arte dos outros, outros trabalhos. Pra mim é muito claro isso. Desde criança, quando estava desenhando, estava querendo ir atrás de um sentimento ou de uma emoção que tinha sido despertada com um filme, um livro, um quadrinho, qualquer coisa. Quase tudo o que fiz foi uma tentativa de assinar outra arte. Esse processo dialético de você ver uma coisa, apropriar-se de partes dela, elaborar e reapresentar é uma definição de trabalho artístico, processo criativo. Não acredito muito em partir do zero, do nada, do éter, do caos, sei lá. Partimos de um mundo de ideias, criamos coletivamente junto com os autores que a gente ama.
Serviço
- Muchacha - Lançado pela Quadrinhos na Cia., tem 96 páginas no formato 20,5 x 19 cm e custa R$ 29.
As fotos são de Theo Marques.
Esta entrevista foi publicada originalmente na Folha de Londrina de domingo, dia 07/11/2010.