A Polícia Federal faz uma conexão entre os ataques ao sistema eleitoral difundidos por Jair Bolsonaro (PL) desde o primeiro ano de governo, em 2019, e a trama golpista descrita no relatório final da investigação divulgado nesta terça-feira (26).
No relatório de 884 páginas em que indicia 37 pessoas, a PF traça uma linha do tempo para afirmar que o ex-presidente planejou, atuou e teve domínio direto sobre os atos da organização criminosa que tentou um golpe de Estado no país.
Durante o governo, o ataque ao sistema eleitoral -o mesmo pelo qual Bolsonaro havia sido eleito durante toda sua vida política- foi perpetrado, segundo provas reunidas pela investigação, pelo uso da Abin (Agência Brasileira de Inteligência), do Ministério da Defesa e de um núcleo chamado de Gabinete do Ódio, no Palácio do Planalto.
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Assim, de acordo com a PF, essa narrativa não seria interpretada como algo casuístico e, após eventual derrota nas eleições seguintes, legitimaria "os atos que se sucederam" à vitória de Lula (PT).
Em outros fatos elencados pela polícia, foi o próprio Bolsonaro quem assumiu o protagonismo, como na manifestação do 7 de Setembro de 2021, em que afirmou que só sairia da Presidência preso ou morto, ou mesmo na reunião ministerial de 2022 –cuja íntegra estava no computador de seu auxiliar Mauro Cid, hoje delator.
Os episódios que apontam para um plano concreto de golpe ganham ainda mais volume no relatório a partir da vitória de Lula, em 30 de outubro de 2022. Mensagens e documentos apreendidos na reta final do governo indicam, de acordo com a PF, que Bolsonaro discutiu decretos de ruptura com militares e pediu apoio antes de deixar o país.
VEJA A LINHA DO TEMPO DOS PRINCIPAIS FATOS, DE ACORDO COM A INVESTIGAÇÃO:
Criação e difusão de informações falsas sobre a segurança das urnas (2019):
A investigação da Polícia Federal afirma que a organização criminosa "construiu e propagou a narrativa de vulnerabilidades e fraudes no sistema eletrônico de votação" desde o primeiro ano do governo Bolsonaro.
Plano para fuga de Bolsonaro (22 de março de 2021):
A PF localizou uma apresentação com cinco slides em um computador apreendido com Mauro Cid "que previa o uso do dispositivo denominado RAFE/LAFE" a favor de Bolsonaro em caso de descumprimento de ordem judicial do STF. Segundo o Glossário de Termos e Expressões para Uso no Exército, RAFE é a sigla para Rede de Auxílio à Fuga e Evasão e LAFE, Linha de Auxílio à Fuga e Evasão.
Bolsonaro faz live com profusão de mentiras sobre urnas (29 de julho de 2021):
Ao lado do então ministro da Justiça, Anderson Torres, Bolsonaro fez uma transmissão ao vivo para apresentar supostas provas de fraude nas urnas eletrônicas. O ex-presidente, porém, abordou apenas teorias conspiratórias já desmentidas e que circulavam havia anos na internet.
Bolsonaro ameaça STF e ataca sistema eleitoral (7 de setembro de 2021):
Ao participar de manifestações em Brasília e São Paulo, Bolsonaro fez ameaças golpistas contra o STF, incentivou desobediência a decisões da Justiça e disse que só sairia morto da presidência da República. A PF diz que o ex-presidente reiterou seu modus operandi e "atacou o sistema eletrônico de votação, dizendo que 'não poderia participar de uma farsa como essa patrocinada pelo Tribunal Superior Eleitoral'".
Reunião ministerial a três meses das eleições (5 de julho de 2022):
A PF também destaca a reunião ministerial de 5 de julho de 2022, 13 dias antes da conversa de Bolsonaro com embaixadores estrangeiros. O vídeo, na íntegra, estava no computador de Mauro Cid. O encontro teve ataques às urnas e ao STF, além de mentiras sobre Lula. O general Augusto Heleno também sugeriu infiltrar agentes da Abin nas campanhas adversárias.
Manifestantes se instalam em frente ao QG do Exército (2 de novembro de 2022):
Mensagens trocadas por Mario Fernandes, então número dois da Secretaria-Geral da Presidência, indicam que o militar mantinha contato direto com manifestantes que ficaram mais de dois meses em frente ao quartel-general do Exército, em Brasília. Em conversa com Mauro Cid, ele diz que tem "procurado orientar tanto o pessoal do agro como os caminhoneiros que estão lá em frente ao QG".
Impressão do plano para matar Lula, Geraldo Alckmin e Alexandre de Moraes (9 de novembro de 2022):
A investigação indica que minutos após o documento batizado de "Punhal Verde e Amarelo" ser impresso por Mario Fernandes no Palácio do Planalto, em 9 de novembro de 2022, o militar foi até a residência oficial para conversar com Bolsonaro.
"Não percam a fé" (18 de novembro de 2022):
O ex-candidato a vice Walter Braga Netto (PL) cumprimenta apoiadores que esperavam o então presidente no cercadinho do Palácio da Alvorada e diz: "Vocês não percam a fé, tá bom? É só o que eu posso falar para vocês agora".
PL contesta resultado das eleições ao TSE (22 de novembro de 2022):
Material apreendido com a empresa que prestou serviço ao Instituto Voto Legal (contratado pelo PL) indica que os investigados sabiam que os argumentos que embasaram o pedido eram inconsistentes. A PF afirma que Bolsonaro e o presidente do partido, Valdemar Costa Neto, insistiram na tese, mesmo com chances baixas de sucesso, para legitimar o golpe de Estado.
Carta ao comandante do Exército (fim de novembro de 2022 - 26 a 29 de novembro):
Trocas de mensagens e depoimentos transcritos pela investigação indicam que Bolsonaro soube e deu aval à carta golpista assinada por oficiais do Exército no final de novembro de 2022. Segundo o relatório, era "uma estratégia para incitar os militares e pressionar o Comando do Exército a aderir a ruptura institucional".
Ajuste no plano Punhal Verde e Amarelo (6 de dezembro de 2022):
Mario Fernandes imprime novamente o documento após "ajuste", na mesma hora em que o tenente-coronel Rafael de Oliveira e Bolsonaro estavam no Palácio do Planalto. No dia seguinte, Oliveira começou a execução dos planos golpistas com a compra de um celular descartável, por meio do qual participou de grupo para a operacionalização da execução das autoridades.
Reunião na residência oficial sobre a minuta golpista (7 de dezembro de 2022):
A PF diz que, "após ter realizado pessoalmente ajustes na minuta do decreto presidencial, Jair Bolsonaro convocou os comandantes das Forças Militares no Palácio da Alvorada para apresentar o documento e pressionar as Forças Armadas a aderirem ao plano de abolição do Estado democrático".
Bolsonaro se reúne com chefe de comando e faz 1º discurso após derrota (9 de dezembro de 2022):
Diante da recusa dos comandantes do Exército, Marco Antônio Freire Gomes, e da Aeronáutica, Baptista Júnior, para executar o plano golpista, Bolsonaro se reúne com o general Estevam Theóphilo, comandante do Comando de Operações Terrestres. Ele aceitou executar as ações, caso a minuta golpista fosse assinada. Naquela tarde, Bolsonaro quebrou o silêncio e discursou pela primeira vez após a derrota para Lula. Em áudio enviado a Freire Gomes no mesmo dia, Cid diz que Bolsonaro "enxugou o decreto".
"Cenário caótico" (10 de dezembro de 2022):
Contas de WhatsApp vinculadas a Mario Fernandes encaminham mensagens com um comunicado para criar um "cenário caótico" em Brasília em 10 de dezembro de 2022 (dois dias antes da diplomação de Lula) e forçar a convocação das Forças Armadas. A investigação não explica por que a manifestação não ocorreu.
Tentativa de invasão da sede da PF (12 de dezembro de 2022):
Bolsonaristas tentaram invadir a sede da Polícia Federal, em Brasília, incendiaram carros e ônibus, espalharam botijões de gás pela cidade e cercaram o hotel onde Lula estava hospedado. Naquele dia, houve a diplomação de Lula pela Justiça Eleitoral.
Operação "Copa 2022" (15 de dezembro de 2022):
Grupo de militares se prepara para colocar em ação um plano para prender ou matar o ministro Alexandre de Moraes, conforme o plano Punhal Verde e Amarelo. A operação foi cancelada.
Pressão e ataques aos comandantes do Exército e da Aeronáutica (dezembro de 2022):
Na reta final do governo Bolsonaro, o grupo aumentou a pressão sobre os comandantes do Exército, Freire Gomes, da Aeronáutica, Baptista Júnior, e aos generais que se recusavam a aderir à tentativa de golpe -inclusive com ataques orquestrados. Em uma das mensagens apreendidas, Braga Netto diz, em 15 de dezembro: "Senta o pau no Batista Junior".
"Ainda tem algo bom para acontecer?" (4 de janeiro de 2023):
Três dias após a posse de Lula e quatro dias antes do ataque golpista de 8 de janeiro, o tenente-coronel Sérgio Cavaliere, um dos 37 indiciados na apuração, pergunta a Mauro Cid: "Ainda tem algo para acontecer?". Cid encaminha duas respostas, que foram apagadas. Diante do conteúdo das mensagens apagadas, Cavaliere indaga: "Coisa boa ou coisa horrível?" e em seguida diz: "Bom". Cid, em resposta à pergunta, diz: "Depende para quem. Para o Brasil é boa".
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