Sessenta anos depois do golpe de 31 de março de 1964, alguns fatores que contribuíram para colocar o país em uma ditadura que durou 21 anos permanecem vivos. Para historiadores e cientistas políticos ouvidos pela FOLHA, a ideia de que os militares podem tutelar a vida política nacional, as pautas morais e o medo do comunismo, que faziam parte do imaginário dos golpistas de 64, são ingredientes que também alimentaram a suposta tentativa frustrada de golpe do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) em janeiro do ano passado.
Ex-militar, Bolsonaro sempre teve ligações com integrantes da chamada “linha dura” da ditadura, os militares que não queriam a redemocratização, entre eles o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, que chegou a ser condenado por tortura, e o general Augusto Heleno, que trabalhou no gabinete do general Sylvio Frota, ministro do Exército que se opunha à abertura política pretendida pelo presidente Ernesto Geisel (1974-1979). Quando era deputado federal, Bolsonaro chegou a defender a ditadura e a prática da tortura e disse que o grande erro dos militares foi “não ter matado 30 mil pessoas”.
As bases sociais que apoiaram o golpe de 64 também possuem similaridade com os apoiadores de Bolsonaro: além de militares, setores empresariais e religiosos (em sua maioria católicos em 64 e evangélicos nos últimos anos).
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O cientista político e professor universitário Luiz Domingos Costa destaca que, com o surgimento de Bolsonaro no plano político, os setores conservadores brasileiros "passaram a assumir publicamente seu golpismo". “Muito por conta da tutela militar, introduziram o golpismo no DNA das novas gerações."
Costa avalia que há um legado autoritário do período entre 1946, com o fim do Estado Novo, e 1964, mas o golpe militar teria dado uma senha para os setores conservadores dominarem a cena sem negociação. “Existe um DNA golpista mais permanente, mas a experiência de 64 ofereceu uma solução drástica e imediata para um problema que a direita e os proprietários de terra teriam que resolver com muita negociação e concessão. Conseguiram neutralizar na base da violência do estado”, afirma o professor. “Bolsonaro disse o que não era dito até então, com a ideia de que militantes de esquerda e de qualquer tipo de minorias merecem uma intervenção militar.”
Tutela verde-oliva
A ideia de que os militares podem interferir no poder civil remonta à Proclamação da República, em 1889. Mais recentemente, ganhou força por meio de uma interpretação equivocada do artigo 142 da Constituição, segundo a qual seria permitido que um dos três Poderes (para os apoiadores de Bolsonaro, o Executivo) convoque as Forças Armadas para uma “intervenção militar constitucional”.
“Os militares sempre quiseram influenciar e tutelar a democracia brasileira, intervindo como ‘moderadores’, como se fossem um quarto poder, o que não existe em repúblicas democráticas”, diz a cientista política e professora Karolina Mattos Roeder. “Eles atuam na política brasileira e desde 1889, diferentemente do que vemos em outras democracias.”
Bolsonaro pode ter sido visto pelos militares como o candidato da vez para voltar ao poder depois da redemocratização, em 1985. Com a desmoralização da classe política após o caso do “mensalão” e a operação Lava Jato, o ex-capitão apareceu como uma opção de combate à corrupção e teve sua candidatura lançada dentro de estabelecimentos militares, como a Academia Militar das Agulhas Negras. “Acredito que Bolsonaro não era o candidato ideal deles, pois não possuía atributos como articulação política, oratória e assessoria capacitada, mas foi o candidato que eles tinham”, afirma Karolina Roeder.
Professor titular do Departamento de História da UFPR, Dennison de Oliveira atribui essa interpretação do papel dos militares a um sistema de crenças que remonta a 1964. “É uma evidência do mito essa crença de que cabe aos militares intervir na polÍtica e de que eles vão intervir se o povo pedir. Em 64, não era o povo, eram alguns setores das classes médias urbanas. Mas esse mito repercutiu fortemente em 2023 e continua repercutido.”
Fantasma do comunismo
O medo do comunismo é outro fator que levou pessoas às ruas em 1964 e para a frente dos quartéis em 2023. Na década de 1960 havia revoluções em vários países e a União Soviética era uma potência, mas mesmo assim o medo era infundado, diz a doutora em História e professora Maria Cecília Pilla. “O combate à corrupção era um discurso muito utilizado, além da luta contra o comunismo. Acho uma verdadeira piada, o João Goulart (presidente deposto em 64) era varguista, não era comunista. Tinha relações com o sindicalismo e o movimento dos trabalhadores, mas era um grande proprietário de terras. Mas, naquele momento de Guerra Fria, havia esse fantasma.”
Dennison de Oliveira é outro que questiona essa versão da ameaça comunista – e também o epíteto de “revolução redentora e democrática” dado ao golpe pelos militares. “A orientação do Partido Comunista Brasileiro não era de fazer uma revolução, era fazer uma frente ampla, dentro do jogo democrático, contra o imperialismo e contra o latifúndio. Mas o pretexto era bom, porque em 1935 teve uma real e verdadeira intentona comunista. Hoje é delirante, porque o comunismo morreu com a queda do Muro de Berlim.”
A Lei de Anistia de 1979, a ausência de punição para militares que cometeram crimes durante a ditadura e os poucos efeitos da Comissão Nacional da Verdade, que funcionou entre 2011 e 2014, podem ter contribuído para o clima de golpe no país entre 2022 e 2023. Diferentemente de outros países latino-americanos, como Argentina e Chile, o Brasil não puniu os envolvidos. O mais conhecido torturador da ditadura, Carlos Brilhante Ustra, chegou a ser condenado, mas a sentença foi anulada em 2018.
“A Lei da Anistia é um legado autoritário”, diz o cientista político Luiz Domingos Costa. “Temos penduricalhos desse legado, o militar que fere o estatuto militar é aposentado com aposentadoria integral, esse protecionismo é muito filho da anistia. Depois o Supremo falou que não dá para mexer na Lei da Anistia e essa coisa vai se entranhando nas instituições. São leis muito antigas, revê-las ou alterá-las mexe em estruturas de interesse.”
Para o historiador Dennison de Oliveira, a orientação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva para que ministros e integrantes do governo não façam atos alusivos ao golpe de 64 é “catastrófica e canalha”. “Está na contramão do relatório da Comissão da Verdade. Se Lula e Alexandre de Moraes estivessem em Brasília no 8 de janeiro, eles teriam sido linchados”, afirma Oliveira. “Militar não é para ser apaziguado, é para receber ordem e cumprir ordem. Desde 1985 o poder civil deveria ter pautado a desideologização das Forças Armadas e ter feito uma reforma radical no ensino militar. Mas o Lula entregou a revisão do Plano Nacional de Defesa e do ensino da história militar para generais.”
Para a historiadora Maria Cecília Pilla, a orientação de Lula passa uma impressão de que todos os militares são golpistas. “Isso acaba colocando as Forças Armadas como se elas fossem uma coisa só, e sempre golpistas, quando teve membros das Forças Armadas que também foram perseguidos na ditadura, alguns desapareceram. Em outros momentos históricos isso não deu em boa coisa, as coisas têm que ser colocadas às claras.”
Na avaliação da cientista política Karolina Roeder, a ausência de memória sobre a ditadura contribui para a interpretação equivocada a respeito do papel dos militares. “A ausência de memória no Brasil e de punição aos crimes ocorridos durante a ditadura militar acabaram por não tirar os militares da política e de não corrigi-los”, afirma. “Não ensina a população sobre os valores democráticos, sobre a importância da democracia como um sistema político que pressupõe a tolerância política e à opinião diversa. Os militares deveriam ficar no quartel e obedecer o poder Executivo, em qualquer democracia é assim.”
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