Londrina

Clube das Mães Unidas mostra que para mudar uma comunidade basta apenas um passo

11 out 2025 às 08:00

“Hoje o maior problema das nossas crianças já não é a fome. Antes, aqui era o berço da miséria. Havia muitas crianças desnutridas, com a barriga grande e os braços finos. Era com isso que a gente lidava”. A fala é da assistente social Ignez Vidotti, 80, que relembra a situação precária em que viviam as crianças e adolescentes de bairros da Zona Leste de Londrina, entre as décadas de 1970 e 80.


Para ela, que é natural de Bauru (SP) e aposentou-se formalmente após 30 anos como servidora municipal, o trabalho na região é sinônimo de missão de vida, que, por consequência, gerou resultados positivos comprovados por números. Conforme o Portal Bonde noticiou em setembro, a vila Fraternidade (Zona Leste) reduziu 90% do analfabetismo de 2010 a 2022. Os especialistas ouvidos pela reportagem creditaram o Clube das Mães Unidas como um dos responsáveis pelo feito.


Vidotti é o pilar da instituição. Mesmo não se definindo como a fundadora, ela reconhece a sua própria importância, já que as suas colegas de profissão “não se incomodavam com o que viam”, enquanto ela “colocava a mão na massa” para provocar mudanças.


“Para começar, não fui eu quem fundou o Clube das Mães Unidas. A instituição em si nasceu na favela do Marabá [Zona Leste], numa casinha de madeira, para as mulheres irem trabalhar e terem onde deixar as crianças. Nessa região, era uma pobreza e uma miséria sem igual. Não havia creche”, relembra.


O projeto tinha apenas um esboço de estatuto e uma escolinha improvisada quando Vidotti decidiu se envolver. Segundo ela, aquilo que começou com uma boa ideia foi perdendo força pela ausência de amparo municipal e estrutura.


“Eu dava orientação nesse grupo. Só que chegou uma hora que eles não tinham mais como funcionar. Não tinham estrutura física, nem capacidade de lidar com as crianças. Então, iam fechar. Foi quando eu conheci uma instituição que trabalhava ajudando na área da assistência à criança e a convidei para assumir a creche”, explica, ressaltando que os trabalhos na Zona Leste se iniciaram devido ao aumento de pessoas viciadas em drogas. “Depois que começamos, o próprio juiz da época falou que os casos diminuíram.”


O pedido de ajuda à instituição foi estratégico. Por meio dessa tática, a creche fundada anteriormente pôde continuar funcionando, mas sob a tutela do Estado. “Naquela época, para trabalhar com pobre tinha que ter influência. Assim, eles conseguiram um dinheiro do Estado para construir uma creche e levaram as crianças”, diz.


Do vazio à ocupação


Com os alunos da creche amparados, Ignez Vidotti iniciou um novo projeto de desenvolvimento comunitário, focado em criar uma estrutura de apoio mais ampla na Zona Leste. 


"Por falta de ajuda da prefeitura da época, o projeto ficou parado, mas eu fiz um levantamento de locais onde a gente pudesse fazer desenvolvimento de comunidade, como se fosse um CRAS [Centro de Referência de Assistência Social], só que mais ampliado", revela.


O local escolhido para esse trabalho foi um barracão que abrigava um antigo mercado. Com o espaço livre, a assistente social, mais uma vez, movimentou-se para dar mais um passo na evolução do Clube das Mães Unidas.


“O mercadão Villa Real tinha acabado de sair. Aí eu pensei: ‘Vou arrumar serviço para eu fazer’. Fui pedir e me cederam para iniciar o projeto. Comecei com o apoio do Departamento de Cultura", conta. Na época, em 1989, ela conseguiu metade do espaço para desenvolver as atividades.


O trabalho começou com recursos escassos, dependendo de doações de vizinhos e apoiadores. “Consegui um fogão com duas bocas e fundei um conselho de moradores na região, juntamente com o presidente da Associação dos Vicentinos e as escolas. Fomos juntando coisas e começando o trabalho”, explica. 


Vidotti ia além de suas funções formais, buscando solucionar problemas básicos da população, como a falta de documentação. "Ia às escolas da região sozinha e sem o direcionamento de ninguém. Existiam muitas crianças sem registro. Eu encaminhava para um amigo de um cartório, que fazia tudo de graça. Muita gente com fome, revirando lixo… eu atendia de tudo."


Entre a luta e a persistência


O Clube das Mães Unidas foi trazido para o novo barracão por um motivo financeiro e logístico. A creche original recebia verba, mas o novo espaço não tinha dinheiro para pagar funcionários. “Foi nesse momento que nós trouxemos o Clube de lá para cá, porque eles recebiam uma verba e nós não recebíamos nada. No começo, eram só voluntários aqui. Não havia dinheiro para pagar ninguém", lembra Vidotti. 


Os poucos recursos que o Clube recebia eram usados para o básico, como o lanche das crianças. Entretanto, não era sempre que o dinheiro chegava, obrigando os profissionais a improvisarem para suprir a demanda. "Certa vez, não tínhamos nada e fui colher erva-cidreira para fazer chá para as crianças.”


Os desafios iam além da falta de recursos. Vidotti recorda os conflitos com adolescentes da região. Fincados num bairro que apresentava um dos piores índices de criminalidade de Londrina, os voluntários do projeto precisavam não só de benevolência, mas de paciência para lidar com a realidade.


"Nós só tínhamos o salão vazio e o fogão de duas bocas, que quase foi levado por uma das crianças. Só vinham para roubar! Naquela época, muitos usavam cola. Chegavam aqui uns 12 ou 15 adolescentes violentos peitando a gente. Já levei até pedrada. A gente não podia servir uma refeição, porque eles viravam mesa e cadeira. Hoje são anjos, mas já tive vontade de fechar e nunca mais voltar."


O Clube foi se estruturando com o tempo. Recebeu doações, como um tear para fazer tapetes, e apoio de parceiros, como o professor Ivan Dutra, do Núcleo Irmã Sheilla, que custeou uma professora para oferecer aulas a crianças com mais de cinco anos. 


“Depois, fomos ampliando com recursos de vários lugares. Contratamos professor de educação física. Levávamos as crianças para as aulas de marcenaria no Núcleo Irmã Sheilla. Naquela época, atendíamos jovens de até 18 anos”, conta.


Ofício para fechar o clube


Com o projeto estruturado e, finalmente, a todo vapor no prédio, os vizinhos tentaram fechar a instituição, por meio de um ofício, devido ao barulho.


Expondo uma fala afiada e que demonstra certo orgulho de todo o "império educacional" que ajudou a construir, Vidotti rebate as críticas que recebeu no período. "Eles reclamavam do barulho, mas se não fosse o Clube, as crianças entrariam dentro da casa deles.”


A virada para a capacitação


O espaço ficou pequeno no início dos anos 2000 por conta da ampliação das atividades e o aumento no número de crianças e jovens atendidos. No período, houve uma ampliação da parceria com o Núcleo Irmã Sheilla. "As crianças foram para lá e aqui ficou vazio", relembra Vidotti.


A assistente social, então, teve a ideia de adaptar a estrutura para o público adulto, focando na capacitação para o mercado de trabalho. "Fizemos uma reforma e pedi ajuda para o Banco do Brasil, que doou as cadeiras para o curso de cabeleireiro. Já tínhamos tear e máquinas de costura. Em 2004, por meio do estado, conseguimos o curso de padeiro.”


Uma missão que não tem fim


Em 2006, Vidotti se aposentou do serviço público e pensou em deixar o projeto para dedicar-se à montagem de uma biblioteca. No entanto, um sonho a fez mudar de ideia. Nele, a assistente social via uma mulher com uma criança no colo e, depois, com um adolescente. 


"Atrás de mim, no sonho, uma voz muito severa falou comigo. Uma fila de crianças maltrapilhas começou a passar. A voz falou assim: ‘Esses aí são os seus filhos. Livros são secundários’. Foi a mesma coisa de jogar um balde de água fria. Por isso eu continuo e ainda não terminei a minha missão”, diz, emocionando-se.


A dedicação da profissional é tanta que, ao receber uma indenização trabalhista, destinou o valor integralmente ao Clube das Mães Unidas, que está construindo um novo barracão para a oferta de mais cursos e atividades. Sem filhos biológicos, ela diz que hoje se considera "mãe de 80", em referência ao número de alunos menores matriculados na instituição. Vidotti faz questão de estar presente e repassar os seus conhecimentos a todos eles. E o carinho é recíproco.


Evolução


Atualmente, o Clube das Mães Unidas oferece cerca de 400 cursos por meio do projeto “Inclusão Produtiva”, além de atividades socioeducativas para crianças de 6 a 14 anos.


Carlos Alberto Souza e Silva, voluntário na diretoria da instituição, destaca o impacto social e financeiro do trabalho. "Quando você oferece a oportunidade de uma pessoa se profissionalizar, ela tem a vida transformada", diz. 


O projeto, que atende majoritariamente mulheres, proporciona, segundo Silva, não apenas o acesso a uma condição financeira melhor, mas também uma revolução de realidades. "A partir do momento que essa mulher - porque 99% dos participantes são mulheres - vem aqui e é acolhida, ela se torna outra pessoa. Muitas delas chegam em depressão e mudam totalmente de vida.”


A profissionalização resulta em renda e, consequentemente, em melhores condições para toda a família, o que tem reflexo direto no acesso à educação, completa Silva. "Quando ela termina o curso, começa a levar renda para dentro de casa e sai daquela pobreza absoluta. Isso tudo acarreta no melhor ensino para as crianças.”


'Eles me ajudaram muito'


A moradora da Zona Norte de Londrina Veruska Foderario, 43, é um exemplo prático da transformação oferecida pelo Clube das Mães Unidas. Com uma filha pequena para criar, ela soube dos cursos por meio de uma prima que já havia sido aluna. Foderario iniciou a sua jornada na instituição com o curso de cuidador de idoso durante a pandemia, o que a levou a atuar como voluntária em hospitais. No entanto, ela descobriu novos horizontes como designer de sobrancelhas. 


“Depois comecei a fazer o curso de design de sobrancelhas. Fiz todos os cursos disponíveis relacionados. Hoje, mantenho a minha filha e a minha casa por meio disso”, relata. Ela, que mora nos Cinco Conjuntos, nunca havia tido contato com a área. “Eu não sabia nem pegar numa pinça. Fiz tudo do zero. O que sei sobre a área, aprendi com eles. Pretendo ampliar o meu negócio e até contratar pessoas.”


O que começou como um plano B se tornou a principal fonte de renda e satisfação. “Para mim significou bastante, porque a minha vontade era ter feito um curso de depilação, mas não consegui a vaga. Fiz design de sobrancelhas só por fazer. Pensei assim: 'Primeiro vou fazer o que eles deixarem e depois faço o que tenho vontade'. Só que foi diferente, porque gostei e me aperfeiçoei”, explica.


Para além da capacitação profissional, o Clube ofereceu o apoio emocional que Foderario precisava. Ela conta que chegou ao local num dos piores momentos da sua vida. O acolhimento, segundo ela, fez toda a diferença.


“Cheguei num momento muito complicado. Tinha acabado de sair do trabalho e de sofrer uma violência doméstica. Estava totalmente perdida. A assistente social brinca que lá não é terapia, mas é terapêutico, e é verdade. Eles me ajudaram muito”, agradece.


Incomodada com os faltantes "que não aproveitam o Clube como deveriam", ela faz um apelo às pessoas que conseguem a vaga, mas não se dedicam integralmente ao projeto. 


"Acho que quem tem oportunidade de fazer os cursos e dispensa, joga a oportunidade fora. Vejo muita gente se inscrevendo e desistindo na segunda ou terceira aula, tirando a vaga de quem realmente quer. As pessoas têm que ter mais responsabilidade, porque lá eles lutam muito pela gente. É até bonito de ver a ação social que eles fazem.” 


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