Análise
Políticas de cotas em programas de residência médica estão sendo questionadas por organizações e candidatos. Eles defendem que a reserva de vagas para grupos populacionais vulnerabilizados é um ataque ao mérito acadêmico.
A residência é uma formação em serviço para médicos graduados. Nela, os interessados escolhem uma área para se especializar. Em média, isso leva dois anos. No entanto, em alguns casos, como a neurocirurgia, pode chegar a cinco anos.
No último sábado (9), Justiça do Distrito Federal negou um pedido do CFM (Conselho Federal de Medicina) contra a reserva de 30% das vagas para pessoas com deficiência, pretos, pardos, indígenas e quilombolas no Enare (Exame Nacional de Residência), forma de ingresso em alguns dos programas de residência mais importantes do país.
Para o conselho, a reserva de vagas cria "discriminação reversa" e fomenta a ideia de "vantagens injustificáveis" na classe médica. Ele defende que a seleção para residência seja baseada somente no mérito acadêmico.
Para a 3ª Vara Cível de Brasília, a entidade não tem legitimidade para questionar a política, uma vez que ação afirmativa é inofensiva para o exercício da medicina.
O CFM poderia recorrer da decisão, divulgada no sábado (9), mas já avisou ao tribunal que não planeja fazer isso. Agora, a organização deve trabalhar pela aprovação de um projeto de lei proibindo cotas em programas de residência médica, disseram membros da direção à Folha.
O Enare é aplicado pela Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares, estatal ligada ao MEC (Ministério da Educação). A prova foi aplicada no dia 20 de outubro em 60 cidades, oferecendo 4.854 vagas de residência médica em 163 instituições de todo o país.
Desde o processo seletivo de 2023, o exame incluía a reserva de 10% das vagas para pessoas com deficiência. A partir deste ano, passou a contar também com cota para pessoas que se autodeclaram pretas e pardas, indígenas e quilombolas -20% das oportunidades.
Procurada, a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares diz que as cotas não implicam privilégio ou quebra da isonomia, como argumenta o conselho federal, mas são instrumentos de equidade para promover reparação histórica e corrigir desigualdades estruturais.
"A existência de políticas de cotas no ingresso às universidades públicas, por si só, não elimina as profundas desigualdades sociais que ainda afetam o acesso às especialidades médicas", afirma a entidade. "Tendo em vista que muitos estudantes ainda enfrentam barreiras adicionais ao tentarem ingressar nos programas de residência, onde há uma acirrada competição e altos custos associados à preparação para exames específicos."
O CFM, porém, não está sozinho em sua argumentação. A AMB (Associação Médica Brasileira) também critica a política afirmativa. "Quando se trata de residência médica, é preciso o entendimento de que todos que farão a prova de especialista já se encontram graduados no curso de medicina", diz a entidade.
Para a associação, o após graduação requer dedicação por meio de muito estudo e esforço por parte de cada indivíduo.
Nem todos os programas de residência médica do país participam do Enare. São os casos dos oferecidos pela Escola Paulista da Medicina, da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).
A instituição aprovou em maio deste ano uma resolução estabelecendo a implementação de cotas na residência. São reservadas 40% de vagas para pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência, e o restante fica para ampla concorrência.
A medida foi amplamente atacada. Em contato com a Folha, graduandos de medicina da universidade pediram a revogação da política, argumentando ser uma forma de desmotivar os não contemplados.
Após a federal paulista aprovar a reserva, foi ventilada a possibilidade de a Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo) seguir a ideia. O programa da residência da USP é o maior e mais concorrido do Brasil.
Nas redes sociais, candidatos iniciaram uma campanha contra a possibilidade. Uma das postagens teve quase 1 milhão de curtidas.
Em nota, a Faculdade de Medicina negou qualquer novidade no ano.
Segundo dados da Demografia Médica de 2023, que utiliza o sistema do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais), ligado ao MEC, no período de 2010 a 2019 houve um aumento de estudantes pretos e pardos nos cursos de medicina do país, passando de 1.483, em 2010 (25,1%), para 9.326 em 2019 (27,7%).
A mudança ocorreu em parte pela maior declaração dos ingressantes, assim como aumento do número de vagas totais disponíveis no período. Houve, também, aumento dos graduandos que fizeram escola pública no mesmo período, de 25,9% (2010) para 29,8% (2019).
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