O atraso na detecção do câncer e no início do tratamento tem levado a um aumento da taxa de tumores diagnosticados em estágios mais avançados, apontam dados do Ministério da Saúde compilados por um novo painel do Instituto Oncoguia.
Em 13 anos, a alta foi de nove pontos percentuais. Em 2008, 53% dos pacientes tinham tumores localmente avançados ou avançados quando começaram a quimio e/ou radioterapia. Em 2021, segundo ano da pandemia de Covid-19, a taxa foi de 62%. No ano anterior, de 61% e, em 2019, de 59%.
A enfermeira Vanessa Cavalcante Miranda Beu, 42, faz parte dessas estatísticas. Em julho de 2020, ela teve diagnosticado um câncer colorretal, um tumor que vem aumentando entre os mais jovens.
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"Eu sentia muitas dores das costas, gases, mas achava que era excesso de trabalho por causa da pandemia, 12 horas em pé na UTI. Não tive dor e nem sangramento", conta. O diagnóstico veio depois de uma obstrução intestinal.
Após a cirurgia, em que foram retirados 27 cm do intestino grosso, ela passou por quimioterapia e voltou a trabalhar. À época, os exames mostraram alguns pontos suspeitos no pulmão, que mais tarde se confirmaram como metástases. Atualmente, Vanessa faz sessões de quimioterapia a cada 15 dias.
"A parte física fica bem cansada nos dias de quimioterapia, isso me deixa um pouco para baixo. Mas a cabeça está boa porque sempre fiz terapia e aprendi a lidar com a doença."
Os dados mostram que a pandemia causou um impacto grande na assistência ao câncer e pode ser um dos fatores para o aumento do diagnóstico tardio e o pior prognóstico da doença.
Em 2020, houve redução de 37,4% do número de biópsias, 50% de exames citopatológicos, 48% de mamografias e de 14,6% de cirurgias oncológicas, em relação a 2019.
Entre os tumores descobertos em estágios mais avançados estão os de pênis, pulmão e fígado (em 88% dos casos, em média, o diagnóstico é tardio). Na outra ponta, entre os que são diagnosticados mais precocemente, estão o de pele (29,8%), olhos (30,8%) e bexiga (37,5%).
As taxas de cura são maiores quando a doença está restrita a um órgão (estágio inicial), caem um pouco quando está no órgão e em linfonodos regionais (localmente avançado) e pioram muito quando já está disseminada para outros órgãos (avançado).
Na distribuição por sexo, os homens são os que têm diagnósticos mais tardios: 67,2% iniciam tratamentos com tumores mais avançados, contra 59,4% das mulheres. O levantamento do instituto se baseou apenas nos registros que contavam com a informação sobre o estadiamento do câncer.
Segundo a psicóloga Luciana Holtz, presidente-fundadora do Oncoguia, houve piora na qualidade do preenchimento desses dados. Em 2008, 9,6% dos registros dos pacientes não tinham essa informação. Em 2021, esse número foi de 11,9%. "Isso mostra o quanto ainda precisamos avançar no correto reporte dos dados para que tenhamos análises cada vez mais próximas da realidade."
Para ela, alguns dos problemas que emperram o diagnóstico precoce do câncer já existiam antes da pandemia e continuam persistindo, como o acesso demorado a biopsias para a confirmação do câncer.
Dados do Oncoguia mostram, por exemplo, que 44,5% das pacientes com câncer de mama iniciaram o tratamento depois de 60 dias, o que contraria uma lei de 2013 que estabeleceu que o primeiro tratamento oncológico no SUS deve se iniciar no prazo máximo de 60 dias após o laudo patológico.
Mais da metade delas (55%) precisa se deslocar para outras cidades para fazer tratamento. "Se for quimioterapia, no mínimo é de 21 em 21 dias. Se for radio, é todo dia. É um impacto grande na vida, na família, nas questões financeiras", diz Luciana.
Para cirurgião oncológico Ricardo Antunes, presidente da Sociedade Brasileira de Cancerologia, a falta de educação em saúde, de prevenção e de informações sobre o câncer também leva a diagnósticos tardios porque as pessoas, de uma forma geral, demoram para perceber que há algo de errado com elas.
"Mas é evidente que a gente tem falta de acesso na saúde pública e isso vem se agravando. Até a paciente chegar, ter a sua avaliação, o seu diagnóstico e tratamento adequado, leva de seis meses a um ano. Nesse período, o tumor não espera, ele avança."
A desinformação sobre a doença também atinge a classe médica, especialmente os generalistas recém-formados, segundo ele. "Faltam cadeiras de oncologia nas faculdades de medicina. E muito do que existe por aí está bem aquém do desejado."
Luciana, do Oncoguia, também defende uma política de oncologia que priorize o diagnóstico precoce, tenha metas claras de investimentos, com mensuração de resultados, e que enfrente as iniquidades em saúde.
Um outro levantamento feito pelo instituto, em parceria com o Datafavela (Instituto Locomotiva) mostra que 7 em cada 10 pessoas que vivem em favelas no Brasil relatam dificuldades para a prevenção e o diagnóstico do câncer, entre as quais a demora para consultas e exames no SUS.
Fernando Maia, coordenador da política nacional de prevenção e controle do câncer do Ministério da Saúde, diz que o governo federal está numa fase de diagnóstico da situação oncológica no país para, até o fim do ano, propor uma série de ações.
"Sabemos que existe um problema grave na atenção das pessoas com câncer. Há várias ações fundamentais, como a qualificação dos profissionais da atenção primária à saúde para identificar melhor os casos suspeitos de câncer e fazer o encaminhamento para o nível especializado, no tempo oportuno."
Outras ações previstas, segundo ele, é uma melhor estruturação dos programas de rastreamento já existentes, como de câncer de mama e de colo de útero, e a incorporação de novos, como o de câncer colorretal.
"Os estudos internacionais demonstram que [o tumor colorretal] é um câncer rastreável, que há impacto na mortalidade quando diagnosticado precocemente, mas o Brasil nunca estruturou um programa sobre isso."
A meta é que haja garantia de acesso em tempo hábil a serviços de confirmação diagnóstica de câncer. No caso do tumor de intestino, a realização de uma colonoscopia e uma biopsia, por exemplo.
"São áreas que ficaram em segundo plano no SUS. Tem lugares que as pessoas até conseguem fazer o exame no tempo indicado, mas o laudo leva 30 a 60 dias. Não tem como", afirma Maia.
O coordenador também chama a atenção para os vazios assistenciais. "Temos regiões de saúde imensas em que as pessoas precisam se deslocar 400, 500 km para ter um atendimento de câncer. Isso é inadmissível."
Uma estratégia estudada é o uso das tecnologias digitais, como de telediagnóstico e de discussões clínicas a distância dos casos complexos.
Entre 2009 e 2021, houve um salto de 32% de novos pacientes oncológicos atendidos, de 156 mil para 206 mil, segundo o levantamento do Oncoguia. Os gastos com quimioterapia também subiram: de R$ 1,8 bilhão, em 2017, para R$ 2,5 bilhões, em 2022, de acordo com o ministério.
"O crescimento está muito relacionado com as novas medicações incorporadas, mas não sabemos, por exemplo, qual o impacto disso na sobrevida dos pacientes em relação aos medicamentos antigos. Precisamos qualificar melhor esses indicadores e torná-los transparentes."