Em meio à pressão de governadores para liberação e discussão sobre prazos que chegou à Justiça, a diretoria da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) negou nesta segunda-feira (26) pedidos de aval à importação excepcional da vacina Sputnik V. O imunizante é desenvolvido pelo Instituto Gamaleya, da Rússia.
A decisão se refere a pedidos feitos por dez estados (Bahia, Acre, Rio Grande do Norte, Maranhão, Mato Grosso, Piauí, Ceará, Sergipe, Pernambuco, Rondônia). O total de doses não foi divulgado.
Além deles, outros quatro estados também pleiteam aval semelhante na agência, mas entraram com pedidos mais tarde. A decisão atual, porém, indica que eles também devem ter entraves.
Segundo diretores e equipe técnica, a falta de dados mínimos e a identificação de pontos críticos entre aqueles apresentados –como falhas no desenvolvimento que trazem incertezas sobre a segurança da vacina– levaram à não aprovação.
Os pedidos dos estados à agência foram feitos no fim de março com base na lei 14.124, que abre espaço para pedidos de autorização excepcional e temporária para importação e distribuição de remédios e vacinas contra a Covid sem registro ou aval no Brasil.
A legislação condiciona o pedido a requisitos, como o fato do produto ter sido aprovado por órgãos regulatórios de outros países, incluindo a Rússia.
A mesma lei prevê prazo de análise que varia de até sete dias úteis a 30 dias –daí o pedido ser analisado nesta segunda (26). Esse último prazo vale para os casos em que o relatório que baseou a aprovação da vacina pela autoridade estrangeira não for apresentado.
Antes da reunião, a Anvisa chegou a solicitar, por meio de recurso ao STF (Supremo Tribunal Federal), a possibilidade de suspender o prazo de análise. O pedido foi negado pelo ministro Ricardo Lewandowski, que analisava ação do governo do Maranhão pela liberação da vacina.
Segundo o diretor Alex Machado Campos, relator da proposta, a falta de apresentação do relatório da agência russa foi um dos fatores que dificultou a aprovação. "A Anvisa notificou todos os estados e abriu caminho para que outros documentos pudessem ser apresentados", disse ele, frisando que não houve resposta.
A análise nos dados obtidos pela agência sobre a vacina, no entanto, também mostrou problemas.
"Foram observadas falhas de desenvolvimento do produto, que resultam em incertezas quanto à qualidade, segurança e eficácia da vacina, assim como foi verificado que os controles de qualidade são insuficientes", disse Campos.
A posição foi seguida pelos outros diretores, em reunião que durou mais de cinco horas. O presidente da agência, Antonio Barra Torres, disse que há riscos inaceitáveis e graves à segurança a partir da análise.
Antes da votação, três áreas técnicas da agência já haviam recomendado a não aprovação da importação da vacina, alegando pontos críticos para a liberação.
"Um dos pontos críticos foi a presença de adenovírus replicante na vacina [que é feita com adenovírus que, por meio de modificação, não deveria se replicar]. É uma não-conformidade grave", disse o gerente-geral de medicamentos da agência, Gustavo Mendes, segundo quem isso pode ter impactos na segurança da vacina.
"O que esperamos de uma vacina de adenovírus vetor é que não tenha vírus replicante [ou seja, capaz de se reproduzir e migrar para órgãos específicos do corpo]. E essa especificação [da empresa produtora] de permitir essa presença não foi justificada", explica.
Segundo ele, o problema foi encontrado em todos os lotes apresentados da vacina para uma das análises. Ao mesmo tempo, não foram apresentados estudos que garantissem a segurança nesse cenário.
É o caso de estudos clínicos de biodistribuição da vacina, os quais avaliam como a vacina e seus componentes se comportam no organismo humano e em animais.
Também não foram apresentados estudos de toxicidade reprodutiva, que avaliam a possibilidade de os componentes da vacina provocarem reações sobre a fertilidade. Esse tipo de estudo é feito em animais.
Recentemente, esses mesmos impasses já haviam sido apontados em documentos internos da agência elaborados pela equipe técnica e enviados ao STF.
Nos laudos, a agência dizia que não conseguia fazer uma análise de benefício-risco positiva sobre a Sputnik V com base nas informações apresentadas até aquele momento pelos estados e pela empresa União Química, que tem uma parceria com a Rússia e entrou com pedido de uso emergencial da vacina no Brasil, hoje com prazo suspenso.
A posição foi reforçada nesta segunda pela equipe técnica da Anvisa. Mendes disse que a agência detectou falhas e dados faltantes nos estudos de segurança, imunogenicidade e eficácia da vacina.
Ele frisa que a avaliação sanitária pela agência é diferente da avaliação feita por revistas científicas –em referência a dados publicados na revista Lancet, que apontaram eficácia de 91,6% para a vacina a partir de dados preliminares de estudo com 20 mil voluntários.
Segundo o gerente, a análise dos estudos de avaliação de segurança, por exemplo, apontou sérias limitações, em especial no modelo de registro e monitoramento de eventos adversos. "A falta dessas informações impede que sejam identificadas possíveis reações adversas importantes que precisam constar em bula", afirma.
A verificação do estudo de fase 3 –momento em que foi verificada a eficácia da vacina– também apontou "conclusões limitadas devido a falhas no desenho do estudo", aponta.
Mendes diz que foram observadas ainda incertezas sobre a qualidade da vacina e o desenvolvimento das doses. Ficaram dúvidas, por exemplo, sobre se o produto feito em escala comercial é comparável ao usado em estudos clínicos e quais os impactos de mudanças no locais de fabricação.
"Percebemos também uma falha no controle de qualidade", diz. Um exemplo é a falta de informações sobre o controle de possíveis impurezas na vacina.
"A empresa não demonstrou que controla de forma eficiente o processo para evitar outros vírus contaminantes", diz. "Tudo isso tem um potencial impacto na segurança das pessoas que forem vacinadas."
Diante da dificuldade de obter dados, a agência fez recentemente uma visita de inspeção à fábricas da vacina na Rússia. A equipe da gerência de fiscalização que foi ao país, porém, não teve a entrada autorizada em todas as plantas de produção, como o Instituto Gamaleya, nem teve acesso a dados suficientes para recomendar a aprovação.
A gerência de monitoramento de produtos sujeitos à vigilância também não recomendou o aval. Segundo a responsável pela área, Suzie Gomes, a ausência de controle de impurezas e a presença de vetor viral replicante traz risco de aumento de eventos adversos.
"O próprio desenvolvedor apresentou informações que não asseguram o controle da replicação do vírus ou comprovam o controle de contaminantes no produto acabado", diz.
Ao votar sobre o pedido, diretores frisaram ainda que a maioria dos países que já aprovaram o imunizante não tem tradição regulatória e não deram dados sobre a vacina (com exceção da Argentina). Parte também disse que a vacina ainda não estava em uso.
A diretora Meiruze Freitas disse reconhecer a pressa dos estados em obter vacinas, mas frisou a falta de informações, o "cenário de pouca transparência" e notícias internacionais que apontam preocupação de outros países sobre a segurança como justificativas para a negativa.
"Questiono se a Anvisa pode se omitir frente às incertezas de segurança e eficácia. Devemos agir só como despachante aduaneiro?", questionou. "O que a agência vem exigindo é o mínimo para garantir a segurança. Não são informações burocráticas."
Esse é segundo pedido excepcional de importação de vacinas contra a Covid negado pela agência. Antes da Sputnik, a agência negou pedido do Ministério da Saúde para a vacina Covaxin, da Índia, também alegando falta de dados mínimos.
Por outro lado, a agência já aprovou cinco pedidos de uso emergencial ou registro de imunizantes contra a Covid. Estão na lista a Coronavac (Butantan e Sinovac), Covishield (produzida pela AstraZeneca por meio do Serum Institute, da Índia), Covishield (pela Fiocruz) e vacinas da Pfizer e Janssen.