“Se eu estava feliz, eu comia algo gostoso. Se eu estava triste, achava que precisava comer algo gostoso pra compensar a tristeza”. O sentimento por trás das palavras da jornalista Nai Fachini, 43, demonstra como era sua relação com a comida. Ela conta que via o alimento como um conforto, o que piorou com a perda da mãe e da irmã em um espaço de tempo de apenas três anos.
“Tudo era motivo para comer ‘bem'. Depois que minha irmã e minha mãe partiram, eu perdi o chão, então passei a não me importar mais”, relata.
Mãe de dois meninos, hoje com 8 e 5 anos, ela conta que engordou 23 quilos na primeira gestação e nove na segunda. “Perdi totalmente a autoestima. Cheguei ao ponto de não querer mais sair de casa para que as pessoas não me vissem com todo aquele tamanho. Tinha vergonha quando as pessoas me reconheciam. Eu não me reconhecia mais. Foi muito doloroso”, relata.
No trabalho, a jornalista conta que muitos olhavam com preconceito, mesmo sem perceberam, e ofereciam "dicas" de como perder peso. “A obesidade é um problema de saúde e, ao contrário do que muitos pensam, as pessoas não são obesas porque querem”, conta, citando os inúmeros tipos de dieta feitas ao longo da vida, desde aqueles que reduzem a ingestão de carboidratos até as mais radicais, em que apenas alimentos líquidos devem ser ingeridos por um determinado período de tempo.
Uma doença estigmatizada
Ex-presidente da SBCBM (Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica e Metabólica), Antônio Carlos Valezi, que também é cirurgião bariátrico, afirma que ainda existe um estigma na sociedade de que as pessoas são obesas porque querem ou porque são relaxadas com a saúde ou com a aparência. O que acontece é que a obesidade é uma doença metabólica, em que toda a energia adquirida através da alimentação é armazenada no corpo, causando um excesso de gordura no organismo.
Como em qualquer outra condição médica, o tratamento envolve medicamentos ou uma cirurgia bariátrica que, a longo prazo, é a melhor opção. Isso porque, além da redução do peso, também traz benefícios para as doenças associadas à obesidade, como a gordura no fígado, que é a segunda principal causa de transplante de fígado no Brasil.
“Não é uma cirurgia somente para perder peso, mas também para a melhora metabólica”, reforça, explicando que o procedimento permite que alguns hormônios, com níveis baixos em pessoas obesas, aumentem e auxiliem no controle do diabetes e da saciedade.
Uma nova Nai
Nai Fachini afirma que a cirurgia bariátrica não "faz milagre" e que é algo muito custoso, já que é necessário, de fato, uma mudança no estilo de vida. Chocólatra, hoje ela garante que come muito pouco chocolate e opta por aqueles com menor quantidade de açúcar. “É uma virada grande de chave que precisa acontecer”, afirma.
A decisão de fazer a bariátrica veio durante um outro procedimento cirúrgico para a retirada de um cisto no ovário. Mesmo com dor, ela, que sempre foi muito brincalhona, disse ao médico que ele poderia aproveitar e “tirar um pedaço do estômago”. Como em qualquer outra cirurgia, o medo e o receio acompanham os pacientes. No caso da jornalista, o que ajudou muito foi conversar com pessoas que já tinham passado pelo procedimento. Com isso, ao focar nos benefícios, o medo foi embora.
A jornalista passou pelo procedimento em 2023 e, no primeiro mês, perdeu 10 quilos e alcançou a primeira grande vitória: fechar os botões de um casaco no tamanho GG. Ao todo, perdeu 40 quilos, chegando aos 58. Na pior fase da doença, vestia o tamanho 54.
“Tive que refazer o guarda-roupas, reaprender a me vestir, tudo mudou. Me vejo de novo no meu corpo. Aquela que eu via antes, não era eu. Eu sempre digo que a bariátrica me deu vida de novo”, afirma, relatando situações em que não conseguia sentar e dobrar as pernas, amarrar os cadarços ou correr.
Depois da bariátrica, Fachini também pôde parar de tomar os dois comprimidos diários para a hipertensão arterial, já que a pressão sanguínea estabilizou menos de 15 dias depois da cirurgia.
“Não é fácil mudar, mas, no meu caso, foi e está sendo muito positivo. Estou amando essa nova fase e, especialmente, como a minha relação com a comida mudou. Hoje eu me alimento porque preciso nutrir meu corpo para ele se manter bem, não mais por fome ou para compensar algum outro sentimento”.
Avanços significativos nos últimos anos
Antônio Cesar Marson, cirurgião do Aparelho Digestivo do Hospital São Francisco, em Cambé (Região Metropolitana de Londrina), e membro da SBCBM, explica que a cirurgia bariátrica passou por avanços significativos nos últimos anos, o que proporcionou um aumento na segurança e eficácia do procedimento, como as técnicas minimamente invasivas e robóticas. Segundo ele, isso vem resultando em procedimentos mais rápidos, incisões menores e com menos tempo de recuperação.
De acordo com a SBCBM, a cirurgia bariátrica é uma intervenção eficaz e segura, com índices de complicações menores do que uma cirurgia de vesícula, ou seja, inferiores a 1%. Entre 2020 e 2024, foram realizadas 291.731 cirurgias bariátricas no Brasil, tanto pelos planos de saúde quanto pelo SUS (Sistema Único de Saúde).
Marson esclarece que existem diferentes técnicas para a realização de uma cirurgia bariátrica, sendo as mais comuns o bypass gástrico e a gastrectomia vertical - também chamada de sleeve. “Essas duas técnicas são as com maior embasamento científico e altamente recomendadas para pacientes com indicação de tratamento cirúrgico da obesidade”, afirma, complementando que a escolha da técnica é decidida entre toda a equipe médica e o paciente.
O médico explica que a indicação cirúrgica é baseada no IMC (Índice de Massa Corporal), que é uma relação entre peso e altura, a presença de comorbidades relacionadas ao excesso de peso e a falha de tratamento clínico, em que os pacientes são acompanhados por uma equipe multidisciplinar.
Resolução amplia acesso ao procedimento no Brasil
Ele detalha que a perda de peso dos pacientes que passaram pelo procedimento pode chegar a até 35% do valor inicial e a taxa de melhora das comorbidades, como diabetes e hipertensão arterial, fica acima dos 50%.
Por isso, o cirurgião aponta que a cirurgia bariátrica vem sendo cada vez mais vista como uma opção de tratamento para doenças crônicas relacionadas à obesidade, o que pode ser visto na resolução (n° 2.429/2025) do CFM (Conselho Federal de Medicina), publicada em abril deste ano e que amplia algumas das regras relacionadas ao acesso à cirurgia bariátrica.
“Para esses pacientes que passaram a ser considerados aptos para o tratamento cirúrgico, o benefício é que terão a chance de controlar ou melhorar as patologias associadas à obesidade e ganhar qualidade de vida, antes que as doenças se agravem mais”, complementa.
Os critérios dos adultos também valem para pacientes a partir dos 16 anos; para aqueles com idades entre 14 e 16, a cirurgia só é indicada caso o IMC seja igual ou superior a 40, além de estar associado a complicações clínicas que possam trazer riscos à vida dos jovens.
“Em outros países, essas indicações já existiam há algum tempo e agora também chegam ao Brasil. Uma série de pacientes se encaixa nessa faixa de obesidade e tem doenças que são de difícil controle, mas que, com a perda do peso, podem se beneficiar muito. Há muito tempo se vinha olhando para esses pacientes com mais cuidado”, explica.
'Autoestima e confiança aumentaram'
O youtuber e influenciador londrinense Eduardo Fernando, 33, mais conhecido como EduKof, passou por uma cirurgia bariátrica em 2021. Em seu canal no Youtube, ele compartilhou diversos vídeos sobre o processo, tanto antes quanto durante e depois, onde é acompanhado por mais de 14 milhões de inscritos.
Em entrevista à FOLHA, ele conta que chegou a pesar 155 quilos. Morando em Orlando, nos Estados Unidos, não conseguia aproveitar alguns dos brinquedos nos parques de diversão por conta do peso, principalmente nos considerados mais radicais. “Antes, a roupa me escolhia. Eu não tinha como escolher a roupa. Eu tinha que ir lá e pegar o que servia”, relembra.
Diferente de outras doenças, o influenciador explica que não é possível esconder a obesidade do olhar atento das pessoas: “é uma coisa visível e que atinge você diariamente”.
Antes, durante e depois do procedimento, ele explica que recebeu inúmeras mensagens de pessoas que o acompanham, mas que muitas envolviam críticas ou comparações desleais. O youtuber relata que já recebeu comentários de que ‘viveria menos’ ou ‘ficaria mal’ após a cirurgia.
Por isso, segundo ele, é fundamental escolher um médico de confiança e ouvir dele todas as recomendações. ‘“Escutar as pessoas na internet é a pior burrice”, afirma. Hoje, mais de quatro anos depois do procedimento, segue tomando vitaminas e garante que a autoestima e a confiança aumentaram muito ao longo dos anos.
“O cara que fez a bariátrica não pode ser visto comendo nada porque as pessoas tendem a criticar e a falar que ele vai engordar de novo”, relata, ainda sobre os comentários que já recebeu nas redes. Ele reforça que a comparação entre uma pessoa e outra também é prejudicial, já que cada organismo responde de um jeito ao tratamento.
O influenciador também reforça a importância de ter um acompanhamento psicológico, já que a cirurgia traz uma mudança muito grande no estilo de vida do paciente. “Você é gordo e come mal durante toda a vida e, do nada, tem que mudar”, comenta, em relação aos hábitos que tinha antes da cirurgia.
Por isso, ele afirma que é essencial pensar na mudança como um todo, o que envolve alimentação e atividade física, sendo a bariátrica apenas um ‘atalho’ para a perda de peso.
Reposição de nutrientes
O endocrinologista Moacir Silva de Godoy Junior destaca que, assim como qualquer outro procedimento cirúrgico, a bariátrica envolve riscos, tanto durante quanto no pós-operatório, como no caso de déficits nutricionais e de vitaminas. “Partindo do princípio de que a gente vai mexer no trato gastrointestinal, o pós-operatório pode interferir na digestão e na absorção dos alimentos”, aponta, citando que, em alguns casos, é necessário fazer a reposição desses nutrientes.
Como muitas das comorbidades estão relacionadas ao peso elevado, o pós-operatório também envolve a realização de exames que mostrem a reversão das doenças, assim como um teste de bioimpedância, que mede a quantidade de gordura corporal antes e depois da cirurgia, a massa magra, a musculatura e os músculos.
A tal da reeducação alimentar
Daniela Lopes Oliveira Bento Nogueira, profissional que também atua no Hospital São Francisco, explica que o papel do nutricionista começa antes mesmo da cirurgia, já que muitos acreditam que apenas a cirurgia vai resolver o problema, o que não é verdade: ela é parte de um tratamento, não a cura da obesidade.
Por isso, a reeducação alimentar tem papel fundamental, em que o paciente vai passar pelo processo de aprender a comer novamente, em porções menores e com foco na mastigação, descansando os talheres entre uma garfada e outra. A nutricionista reforça que todas essas técnicas são trabalhadas entre o profissional e o paciente para que o pós-operatório seja mais tranquilo.
Após a bariátrica, a dieta talvez seja um dos principais receios de quem vai passar pelo procedimento, entretanto, ela destaca que é necessário levar em conta a técnica utilizada no procedimento e o organismo de cada paciente. Nos primeiros dias, a dieta é líquida, o que ajuda a preservar o trato gastrointestinal, e a evolução caminha conforme o processo de cicatrização.
Segundo ela, muitos pacientes sentem a vontade de mastigar durante a fase da dieta líquida, então alguns truques ajudam a aliviar esses desejos, como congelar porções de suco, por exemplo, para que eles possam simular a mastigação de uma alimento sólido.