Mania de raspar o doce que ficou no fundo do tacho, de roubar um doce da mesa, antes da festa começar; ficar olhando os doces nas confeitarias. Doce depois do almoço e após o jantar. Doces para adoçar a vida depois de uma decepção, para celebrar a alegria de uma conquista ou de uma união.
Esses costumes são requintes europeus, trazidos ao Brasil pelos portugueses. Uma delicadeza que, por séculos, separou os nobres dos plebeus. Saber preparar uma receita e apreciar um bom doce era uma tradição reservada a poucos privilegiados, que se destacavam por suas recepções regadas a boa comida, boa bebida e excelentes manjares e quitutes.
As receitas mais tradicionais dos doces portugueses, que inspiraram as sobremesas brasileiras, foram criadas em segredo, no silêncio de conventos de Lisboa, ainda no século 13. Na época, as casas religiosas chegavam a ter 100 mulheres. Além de freiras, abrigavam jovens órfãs e viúvas, que garantiam seu sustento produzindo e vendendo trabalhos manuais como rendas e bordados, que fascinavam a nobreza.
A professora de História do Brasil e pesquisadora da Universidade Estadual de Londrina (UEL) Izabel Bilhão conta que, para valorizar as rendas e cambraias, as freiras utilizavam uma goma à base de clara de ovo. ''Como sobravam as gemas, elas foram criando diversas receitas. Surgiam os pudins, quindins, papos de anjo. Esses doces, conhecidos como conventuais, eram batizados com alusões a fé de quem os preparava: pudim celeste, creme divino, bolo de Santo Antônio, pastel de Santa Clara'', explica a pesquisadora.
Com a colonização brasileira, no século 16, vários conventos foram abertos em nossas terras. As monjas portuguesas trouxeram o conhecimento das receitas e o costume de saborear os doces. Descobrindo aos poucos os ingredientes naturais da ''Terra de Santa Cruz'', reinventaram muitos quitutes, que eram enviados às famílias amigas e aos nobres que prestavam algum favor.
Como os conventos brasileiros deviam pagar tributos à coroa portuguesa e ao Vaticano, as freiras passaram a vender os doces que produziam, divulgando ainda mais o costume das sobremesas.
Doce na mesa, sinal de nobreza
No Brasil colônia, visitar uma senhora nobre era o grande desejo das esposas de emergentes. O modo de se comportar à mesa, a prataria, a cristaleira e as louças onde eram servidos os doces, tornavam-se o assunto das fofocas semanais. Um modo simpático de socializar. ''As senhoras, ou sinhás, como os escravos as chamavam, copiavam as receitas dos conventos para impressionar as visitas. Assim, elas mostravam que, mesmo vivendo na colônia, eram civilizadas.''
Os doces se tornaram uma forma de status. Para manter-se nas rodas sociais, as sinhás trocavam entre si os pratos que cozinhavam. Presentes que recebiam nomes como saudades, muxoxos, agradinhos.
As jovens moças, com idade para casar, também aderiam às receitas, enviando às futuras sogras as regalias que serviam de sinais sobre os reais interesses. Maneira discreta de conquistar não só o paladar, mas a apreciação das mães dos jovens solteiros. ''Essa prática era muito comum, porém bem velada. As mães eram encarregadas de mostrar os dotes culinários e a educação das filhas para as futuras sogras. As meninas cozinhavam e suas mães enviavam os doces. Daí surgem o espera-marido, o casadinho.''
Aos poucos, as sobremesas ganharam contornos brasileiros. A grande variedade de frutas em nossas terras proporcionou uma gama de compotas e cristalizados que Portugal não poderia pretender. O sabor tropical foi exportado para as mesas dos nobres e ainda hoje, quatro séculos depois, os brasileiros partilham da mesma mania do país do velho mundo: saborear as delícias do açúcar.
Sabores que conquistam
Eliane de Oliveira morou 10 anos em Lisboa, onde trabalhava em um restaurante. Ficava impressionada pelos detalhes dos formatos e o delicioso sabor das sobremesas servidas. Foi então que ela resolveu frequentar mais a cozinha do estabelecimento, para aprender as receitas. Acabou casando com o responsável pelas delícias, o confeiteiro João Carlos Lopes de Jesus.
O esposo de Elaine trabalhou em uma confeitaria tradicional de Lisboa, na adolescência. O chef de cozinha do local estimava o jovem e o ensinou alguns dos segredos que atravessaram séculos em sua família. ''Foi uma oportunidade incrível. Ele conhecia receitas e modos de preparo que passou unicamente para mim, pois não tinha filhos. Dizia que eram receitas únicas, que nunca tinham saído de sua família.''
Em 2008, Elaine voltou para o Brasil, com João Carlos junto. Tinham o objetivo de começar um negócio em Londrina, trazendo para a cidade os sabores portugueses: empadas, tortas e os tradicionais pastéis de Belém e de Santa Clara. Para se adaptar à nova realidade, o português trabalhou em uma confeitaria londrinense e percebeu que suas receitas teriam grande aceitação.
No final do ano passado, o casal abriu a ''Doceria Portuguesa''. Todos os doces são feitos por João Carlos, durante a madrugada. Ele começa a produção na primeira hora do dia. Os cuidados com os recheios, caldas e massas folhadas garantem os belos formatos e sabores. ''Eu faço a quantidade diária de venda. Não posso vender doces feitos no dia anterior, a qualidade e o sabor ficam comprometidos. Mas é difícil haver sobra. Os doces acabam antes que eu feche as portas.''
A Doceria Portuguesa fica na rua Quintino Bocaiúva, 802. Mais informações pelo (43) 3329-3644.