Tudo começou em 1964. Meses depois de 1º de abril – ou 31 de março, como preferem os simpatizantes, para fugir do Dia da Mentira –, quando foi deferido o Golpe Militar no Brasil, iniciou-se a campanha "Ouro para o bem do Brasil". Em meio a uma grave crise política, com direito a inflação galopante e cofres vazios, eis que o grupo Diários e Emissoras Associados, comandado por Assis Chateaubriand – "Chatô", para os íntimos – tem a brilhante ideia de lançar uma campanha pedindo para que a população doasse joias em ouro para ajudar o Brasil a se recuperar. Se um casal doasse suas alianças de casamento, por exemplo, receberiam um par de alianças de metal e um papel escrito "Doei ouro para o bem do Brasil" em retorno.
A campanha acabou saindo do controle. Foram doados quadros, apartamentos, relógios, carros, dinheiro e até mesmo uma enxada de ouro, esta por José Garcia Molina, um dos pioneiros de Londrina. Em junho de 1964, a revista "O Cruzeiro" fez um balanço dos valores arrecadados. Estima-se que mais de 400 quilos de ouro e cerca de meio bilhão de cruzeiros foram doados. Hoje em dia, somente a quantidade de ouro equivaleria a mais de R$ 55 milhões.
Meses depois, a campanha caiu no esquecimento. Até hoje não é claro o que foi feito com todas as doações. Não há nenhum registro de qualquer manifestação por parte do governo sobre o assunto. Nenhum agradecimento, nenhum balanço com os números definitivos das arrecadações. Hoje, acredita-se que parte do ouro arrecadado foi utilizado pelo grupo de "Chatô". A única certeza é que não há nenhuma certeza em relação aos bens doados.
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O jornalista e cineasta Chaim Litewski está trabalhando na gravação de um documentário sobre essa campanha. Ele veio a Londrina nos dias 10 e 11 de março para saber mais sobre a enxada de ouro. Foram gravadas entrevistas com Ana Maria Garcia Andretta, filha de Molina, e com Andre Luiz Lima, autor do livro "A Enxada – O presente", lançado no ano passado e que aborda o tema. As gravações foram feitas no Parque de Exposições Ney Braga, onde existe um busto em homenagem a José Garcia Molina e um museu em seu nome.
Durante a campanha, a enxada de ouro ficou famosa em Londrina. Era um símbolo da família, explicou Ana Maria em entrevista ao documentário. Ela foi doada por José Garcia Molina, mas acabou indo parar em um museu no Rio de Janeiro e, posteriormente, tornou-se posse de Antonieta Castelo Branco, filha de Humberto Castelo Branco, primeiro presidente da Ditadura Militar. Hoje, a enxada se encontraria no Museu Militar Conde de Linhares, também no Rio de Janeiro. Porém, em contato com a direção do museu, Ana Maria e Andre foram informados de que o objeto não estaria em exposição pública e que eles não poderiam ter acesso a ele.
À época, o sumiço da enxada causou uma grande comoção em parte da população londrinense, como explica André. Mas não houve um arrependimento na doação por parte de Molina, diz Ana Maria. Ela acredita que a enxada deve ficar no museu, mas em exposição ao público.
Esta não é a primeira vez que Chaim aborda a Ditadura Militar em suas produções. O premiado documentário, "Cidadão Boilesen", de 2009, é um perfil do empresário dinamarquês Henning Albert Boilesen, acusado de financiar a repressão violenta dos militares. "Quero desenvolver alguns filmes sobre a história recente do Brasil, que é algo que me interessa muito", diz. "Cresci no período da Ditadura Militar e comecei a ter uma reflexão em torno do que vivia durante essa época. O filme diz respeito a isso. É uma exploração pessoal."
Chaim Litewski entrevista Ana Maria Garcia Andretta
Além do documentário sobre a campanha do ouro, Chaim também está trabalhando em outras duas produções. Uma sobre o conflito entre Brasil e França entre 1961 e 1963, conhecido como "Guerra da Lagosta"; e outra sobre o escritor Peter Kellemen, húngaro que viveu no Brasil, conhecido pelo livro "Brasil para Principiantes". "Todos os filmes se passam em um período próximo à ditadura, mas nenhum fala especificamente sobre ela."
Livro "A Enxada"
No ano passado, Andre Luiz Lima, o autor do livro "A Enxada – O presente", concedeu entrevista à coluna "Autor e Obra", do jornal UEL FM Notícia, da rádio da UEL (Universidade Estadual de Londrina). Ouça mais detalhes sobre a publicação, que conta a história a partir da perspectiva da própria enxada, no link abaixo.