Lar da família Madrigal, protagonista da animação "Encanto", a Casita é um casarão colorido no meio da selva colombiana e que tem vida própria. Nas entranhas do imóvel, escondido atrás das paredes, um personagem misterioso passeia despercebido -é Bruno, tio com o dom de prever o futuro.
Pouco sabemos dele até que, em determinado ponto, uma canção o apresenta ao público numa mistura dançante de ritmos. "Não Falamos do Bruno", ou "We Don't Talk About Bruno", no original, parece despretensiosa frente a outras canções do musical, como a festiva "Família Madrigal", a edificante "Só um Milagre Pode Me Ajudar" ou a de pegada pop "Dos Oruguitas". Mas, para a surpresa de muita gente, foi ela a que caiu no gosto do público.
Não só isso -a faixa tem quebrado recordes e desbancado artistas do calibre de Adele e Ed Sheeran nas paradas musicais. Na semana passada, "Bruno" alcançou a primeira posição da Billboard Hot 100, tabela semanal que classifica as canções mais ouvidas nos Estados Unidos a partir de números de vendas, rádio e streaming.
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Há duas semanas, a faixa também ocupa o primeiro lugar no Reino Unido, enquanto figura entre as dez mais ouvidas de Austrália, Canadá e Irlanda. É um sucesso absoluto, que ajudou a puxar a trilha sonora de "Encanto" para o topo da Billboard 200, ranking americano de álbuns com mais plays.
É a primeira vez desde 1993 que uma música original da Disney chega o topo das paradas americanas -na ocasião, "A Whole New World", de "Aladdin", se tornou a mais escutada do país. Nem o sucesso arrebatador de "Frozen" e seu exaustivo "Let It Go" alcançaram tal feito, congelando na quinta posição da lista.
"Bruno" nem mesmo teve um empurrãozinho de vozes célebres, já que é cantada por atores latino-americanos menos conhecidos, entre eles John Leguizamo. Não foi o caso de "Can You Feel the Love Tonight", de Elton John para "O Rei Leão", "Beauty and the Beast", de Celine Dion para "A Bela e a Fera", e "You'll Be in My Heart", de Phil Collins para "Tarzan", que frearam no quarto, nono e 21º lugar da Billboard, nesta ordem.
O sucesso pegou até mesmo a Disney de surpresa, já que o estúdio enviou para a consideração dos votantes do Oscar, na categoria de melhor canção original, a faixa "Dos Oruguitas", uma balada que, ao menos na teoria, teria melhor trânsito entre os ouvintes. Meses depois da seleção, sabemos que a escolha foi equivocada, já que "Bruno" teria mais chances tanto de uma indicação, quanto da estatueta em si.
"A Disney apostou em 'Dos Oruguitas', pôs o Maluma para cantar a versão original, o sertanejo Felipe Araújo aqui no Brasil, mas acabou caindo do cavalo", diz Mariana Elisabetsky, que assina a versão brasileira de
"Encanto" e de várias outras animações da Disney. "Se 'Dos Oruguitas' tivesse bombado, a gente talvez nem estivesse falando dela. Como foi 'Bruno' que bombou, não se fala em outra coisa."
Mas como foi que a faixa se tornou um fenômeno musical tão grande? É difícil precisar o motivo, já que nem a Disney conseguiu antecipar seu potencial, mas há várias teorias. Talvez o principal fator, que ajuda a explicar o porquê de as trilhas de "Frozen", "Frozen 2" e "Moana" não terem sido tão escutadas, apesar do sucesso estrondoso na bilheteria, seja o TikTok.
Quando os filmes da rainha de gelo e da heroína polinésia foram lançados, a rede social chinesa ainda não existia ou ainda não havia ganhado tração. Hoje, ela se solidificou como a rede social preferida dos novinhos e uma poderosa ferramenta de marketing.
Não é preciso navegar muito no TikTok para se deparar com alguém reencenando o clipe de "Bruno". Os filtros e efeitos disponíveis na plataforma ajudam a replicar a teatralidade da animação, enquanto a tendência da rede social de abrigar desafios de dança casou bem com a coreografia rápida e divertida feita pelos personagens de "Encanto".
Outro fator de impulsão exclusivo do novo longa é que, ao contrário de animações musicais anteriores, ele chegou à casa das pessoas muito rapidamente, depois de apenas um mês de sua temporada nos cinemas.
A estreia no Disney+ permitiu que os espectadores vissem e revissem à exaustão suas cenas preferidas de
"Encanto" -e, consequentemente, que as reproduzissem pelas redes sociais afora.
Para além de estratégias de lançamento, no entanto, é importante considerar a parte criativa da coisa.
"Encanto" não é uma animação como outras da Disney -ela é a primeira ambientada na América do Sul e tem vários personagens que fogem do "padrão princesa" do estúdio, que são negros e têm cabelos e corpos em diversos formatos.
Isso causa uma identificação no público. Nas últimas semanas, um vídeo de uma criança assistindo ao desenho viralizou na internet brasileira e logo foi parar em canais de notícia lá fora e até no Instagram de Viola Davis -"o poder de ver a si mesmo na história", escreveu a atriz.
Nas imagens, Manu, de três anos, diz "sou eu, mamãe, eu cresci", apontando para a televisão, onde a protagonista Mirabel aparece com sua pele, penteado e óculos semelhantes aos da menina. "Não há nada melhor que você ver a alegria da sua filha em se sentir representada na tela", diz a mãe dela, Hannary Araujo, que conta que Manu não teve reação tão efusiva a outras animações.
No TikTok, vemos que boa parte dos usuários que replicam dancinhas e músicas de "Encanto" também não se enquadram nos padrões estéticos que já reinaram absolutos na sociedade. Tudo isso ajuda a explicar o porquê de a trilha sonora de "Encanto" ter feito sucesso, mas não diz muito sobre o motivo de ter sido especificamente "Bruno" a viralizar, e não qualquer outra faixa.
A resposta para isso Lin-Manuel Miranda, compositor do longa, talvez tenha dado sem ao menos perceber, meses antes do sucesso da faixa, em entrevista a este jornal. Na ocasião, ele contou que para as canções do filme buscou inspiração em ritmos regionais, como bambuco, mapalé, cumbia e joropo, e no "rock do início da carreira da Shakira".
"Eu queria escrever um bolero sobre uma fofoca, foi daí que veio 'Bruno'. Essa é uma música muito teatral, porque há vários solos e de repente todos cantam juntos no final -é puro teatro", afirmou.
De fato, a faixa é muito semelhante a outros números clássicos dos palcos. Elisabetsky, que assinou a versão brasileira e também trabalha no teatro, a compara a músicas responsáveis por fechar ou abrir os diferentes atos dos musicais, como "One Day More", de "Os Miseráveis", e "Tonight (Quintet)", de "Amor, Sublime Amor". Elas se assemelham a "Bruno" por serem impactantes, a fim de pontuar uma parte importante da trama, e também por terem vários personagens cantando ao mesmo tempo.
"Isso é como um madrigal, que são obras antigas nas quais havia muitas linhas melódicas que, combinadas, formam uma harmonia. Isso dá uma sensação de prazer para quem está ouvindo, fascina o público", diz ela, sobre as composições polifônicas populares nos períodos barroco e renascentista.
Curiosamente, o sobrenome da família protagonista de "Encanto" é justamente Madrigal.
De acordo com um estudo do neurocientista Wolfram Schultz, da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, nosso cérebro libera dopamina, neurotransmissor responsável pela sensação de prazer e felicidade, quando antecipa que algo satisfatório está por vir -da mesma forma, as várias vozes de uma canção como
"Bruno" geram expectativa para um final catártico. Quando elas se unem e enfim entregam o que prometeram, a faixa se torna memorável.
Não é de hoje que a Disney vem se aproveitando das técnicas do teatro musical para alavancar a popularidade de seus filmes. Com Lin-Manuel Miranda, queridinho do momento e compositor do sucesso teatral "Hamilton", o estúdio reproduz uma lógica que o lançou à sua renascença nos anos 1990.
Na época, uma crise criativa ameaçava o departamento de animação da Disney, até que eles buscaram na Broadway jovens compositores talentosos, que impregnaram seus filmes com a linguagem e o espetáculo do teatro musical, como em "A Pequena Sereia" e "A Bela e a Fera", musicados por Alan Menken e Howard Ashman.
A convergência entre cinema e teatro se provou bem-sucedida, mas foi sendo abandonada aos poucos conforme a década passava -de compositores da Broadway, a Disney começou a convidar astros do pop, até que, na virada do milênio, a fórmula se provou gasta.
A Disney parece passar por outra era de ouro, puxada por musicais como "Frozen" e "Encanto". Para além de conversarem com o público infantil, eles também encantam os mais velhos, aguçando a memória afetiva de papais e mamães que, nos anos 1990, cresceram ao som de "A Bela e a Fera" e companhia.
O resultado é que, agora, todo mundo só fala do Bruno.
ENCANTO
Onde: Nos cinemas e no Disney+
Classificação: Livre
Produção: EUA, 2021
Direção: Jared Bush, Byron Howard e Charise Castro Smith