"Eu digo que o primeiro patrocinador, o primeiro de todos, é o Pai, o Filho e o Espírito Santo de Deus", diz Mary Hellen Bitencourt, de 43 anos, cantora, influencer, empresária, pregadora e, nesta noite, uma das apresentadoras do "Culto da Resistência".
E o segundo? "Está surgindo o primeiro estimulante sexual voltado para o público gospel, o Levanta Varão", diz seu marido mais tarde, quando a repórter repete a pergunta sobre marcas que apoiam o autointitulado primeiro reality gospel do Brasil. "É o nosso patrocinador oficial."
O tal produto, um frasco com cafeína, guaraná, maca peruana e outros ingredientes energéticos encapsulados, é na verdade outro projeto de Silas Bitencourt, de 43 anos. Junto com a mulher, o empresário gerencia uma rede de empreendimentos que vai da família Ota, com um trio irmão de pregadores mirins, ao canil Rei dos Lulus, "o maior site especializado em compra e venda de filhotes de lulus da Pomerânia".
Há cinco meses, Silas Bitencourt veio com a ideia de um reality que se assimilaria às provas de resistência do Big Brother Brasil, nas quais brothers e sisters podem passar por horas de apertos físicos e psicológicos até só restar um.
Pouco antes da meia-noite da sexta-feira (3), cem pessoas começaram a provação num salão em Sorocaba, no interior paulista, sem ar-condicionado ou distanciamento recomendado em tempos de pandemia. Uma cadeira colada na outra e um púlpito à frente. A disputa só termina no fim da tarde do dia seguinte, com os finalistas de pé em volta do Renault Kwid que seria dado para o vencedor -a opção era levar o carro ou um Pix de R$ 25 mil na hora.
Os concorrentes precisam segurar xixi, fome, sede, vontade de checar o celular e até a posição enquanto escutam pregações e louvores oferecidos em rodízio por convidados.
O elenco de resistentes tem Wendel, um ex-jogador do Palmeiras, a pastora Patricia, com 5 milhões de seguidores no Facebook, e alguns nomes do SBT, como Mara Maravilha e o mágico Ossamá Sato, de "A Praça É Nossa" e do "Programa do Ratinho".
Mister M, o ilusionista mascarado que revelava segredos do ofício num quadro do Fantástico no fim dos anos 1990, também foi. Interpretado pelo americano Val Valentino, "mostrou a força da empresa, que, mesmo sendo gospel, queria trazer um participante conhecido internacionalmente", segundo Silas Bitencourt.
Robinson Monteiro, o Anjo, que despontou no show de calouros de Raul Gil em 2001, é outro tratado como celebridade. Com "Deus acima de todos" escrito em pedraria reluzente na camisa, o cantor gospel vê um propósito no "Culto da Resistência" que transborda a competição em si. "As pessoas precisam saber que a igreja também se diverte."
Hoje três em cada dez brasileiros, evangélicos movimentam um mercado vibrante. Muitos produtos seculares -como quem crê chama tudo o que está fora da vida cristã- são adaptados para a realidade do segmento. É aí que o reality do casal Bitencourt se encaixa.
Está na hora. Um termômetro para medir temperatura, praxe no protocolo sanitário contra a Covid-19, repousa esquecido num canto. "Quem é aquele povo que se não usar máscara morre?", diz Silas Bitencourt, entregando um protetor facial para quem levanta a mão.
Os próprios participantes tratam de divulgar a atração, transmitida pelo YouTube e replicada em redes sociais. Quem não colaborou leva pito do mestre de cerimônias, que lamenta a falta de empenho de algumas assessorias. "Gente, até a Beyoncé tem 15 segundos para gravar um vídeo, a Anitta."
Marcado para as dez horas da noite, o reality atrasa, e um pouco cristão bate-boca irrompe entre adversários irritados pelo calor e pela demora. Mara Maravilha acusa um oponente de infringir regras ao beber água e ameaça ir embora. Vai, mas volta. Alguns minutos depois, lá está ela, com uma garrafinha de água. Dá goladas com ar de provocação.
"Que vergonha, trabalhei tanto por este momento", Silas Bitencourt recrimina o rebuliço na plateia. "Acabou a brincadeira, vamos calar a boca agora, em nome de Jesus."
Não dá muito certo, e o exasperado anfitrião, metido num paletó de cetim preto ornado com o sapato salpicado de brilhantes que comprou em Boston, relembra o que está em jogo. "Nem um pio! Se eu não estivesse correndo feito doido há cinco meses, não tinha carrinho, não tinha '25 milzinho'."
Mais cedo, enquanto fazia um tour com a repórter pelo espaço, Mary Hellen Bitencourt comparava a saga do marido ao do patriarca bíblico que, sob comando de Deus, construiu uma arca para abrigar a sua família e todas as espécies de animais quando uma inundação caísse sobre a Terra.
"Quando chegou a última semana [antes do programa], aí o povo começou a vir atrás do Silas de tal forma. Mais de mil mensagens para ele responder no WhatsApp. Eu disse que ele estava como Noé", conta. "Quando ele disse que ia cair dilúvio, ninguém botou fé, riram da cara dele. Mas, quando a porta da arca fechar, ninguém entra, ninguém sai. Não tem jeitinho, não."
"Confessa realiteira" que, em 2015, foi a nona eliminada de "A Fazenda", da Record, Mara Maravilha diz que, "no meio desse povo, me sinto mais maravilhosa". Um assessor faz chegar à repórter que ela adoraria participar do "BBB 22", se Silvio Santos a liberar. Avise Boninho, o piloto do reality da Globo, por favor.
Mara abandona o "Culto da Resistência" no fim da manhã. Por volta das nove horas de sábado, ainda havia 62 pessoas dispostas a continuar. Conforme as regras, após amanhecer, a trupe migra do salão fechado para um pátio ao ar livre, sob forte sol. Devem ficar paradas, como estátua quase, ou pedirem para sair. A louvação continua num palco montado em frente.
Já estamos no meio da tarde, e 20 participantes perseveram. Os organizadores não aguentam mais. Silas Bitencourt, que tinha ido tirar um cochilo, está de volta.
"Vocês vão cair, vão bater a cabeça, vão morrer", diz àqueles que não topam dividir o prêmio entre os que permanecem sem ir ao banheiro, comer ou descansar por 17 horas seguidas. Um rapaz com estetoscópio a tiracolo, apresentado como enfermeiro, auxilia os obstinados.
Segundo Mary Hellen Bitencourt, a perseverança é qualidade comum no evangélico. As abstinências incentivadas pelas igrejas são um bom exemplo. "A Bíblia nos ensina que, para adquirir algo, é preciso fazer mais. 'Vou fazer um jejum, vou me sacrificar no altar, não vou beber, não vou comer por algumas horas, alguns dias, e tenho certeza que Deus vai me responder. Ele vê o sacrifício sincero do coração."
A horas do início, ela explica a tônica do projeto que seu marido idealizou no meio da segunda onda da pandemia. "Vai ter adoração, vai ter espiritualidade, mas digo também que teremos brincadeiras, claro. Vão ser pessoas buscando o prêmio. É algo inovador que o gospel ainda não fez. Então, amém, vamos fazer."
Perto do fim, Silas Bitencourt está exausto. O pessoal não arreda pé. Abaixa, varão. "A direção do evento tentava o tempo todo conscientizar que, fazendo isso [aceitando rachar os R$ 25 mil], eles também poderiam sair dali como vencedor", conta depois que tudo termina. "Era sofrimento demais ter que aguardar até 48 horas."
Dois homens que não queriam saber de dividir o dinheiro -R$ 25 mil do primeiro lugar mais R$ 10 mil prometidos ao vice-campeão- acabam caindo. Os 14 últimos guerreiros, nove homens e três mulheres, topam a partilha do pão. Levam R$ 2.500 cada um, quase R$ 130 por cada hora que passaram resistindo.
Tudo acaba com fogos de artifício, "para não deixar nada a desejar aos realities milionários que passam na TV", afirma Silas Bitencourt. "Graças a Deus", diz. "Já pensou eu lá até agora? Misericórdia."