Pressão dos fãs, dificuldade de se manter neutro num ambiente político tenso e segurança em se posicionar contra Jair Bolsonaro no momento em que a opinião pública massacra o governo pela má condução da pandemia são alguns dos fatores que levaram estrelas da música pop a descerem do muro nos últimos dias, afirmam especialistas, uma tomada de posição que não necessariamente vai trazer danos de imagem a eles.
Logo que o país atingiu a marca de 500 mil mortes por Covid, Ivete Sangalo e Anitta, cobradas por não se posicionarem contra o governo federal numa classe que se opõe em massa ao presidente, parecem ter saído do armário. Depois de dizer que o meio milhão de vidas ceifadas não era "sobre partidos", mas "sobre humanidade" -o típico discurso isento- a baiana afirmou, sem mencionar Bolsonaro, que "esse governo que está aí não me representa nem mesmo antes da ideia de ele existir".
Há quem tenha visto nessa atitude uma resposta à funkeira carioca, para quem as 500 mil mortes são sobre "fora, Bolsonaro, sim", conforme Anitta escreveu em seu Twitter, acrescentando que é a favor da democracia e do senso coletivo. Depois dela, nomes associados ao campo progressista, como Djavan, Titãs e Pablo Vittar também se posicionaram contra o governo. No início do mês, Xuxa postou uma foto em que uma mulher enrolada numa bandeira do Brasil segura um cartaz onde se lê "fora, miliciano".
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Esses artistas se posicionam num momento em que as redes sociais deixam de ser "um puxadinho da nossa vida privada e se tornam vias públicas", diz Marina Roale, gerente de pesquisa do grupo Consumoteca. Segundo ela, a mudança traz junto uma cobrança em torno de figuras públicas, e fica cada vez mais difícil separar a obra de um músico de sua opinião política, como era até mais ou menos 2010, em que ouvíamos bandas sem se preocupar com isso.
A pesquisadora exemplifica essa mudança com o caso de Anitta, cobrada nas eleições de 2018 para aderir à hashtag #elenão -ela apoiou e desafiou Ivete Sangalo a fazer o mesmo. Anitta também participou de aulas de política com a comentarista e ex-colunista do jornal Folha de S.Paulo Gabriela Priolli. "A gente está nesse momento em que tudo é político. A roupa que a gente usa, o que eu como ou não, a forma como eu exponho meu corpo no Instagram é um ato político."
Defender um ponto de vista faz com que artistas com milhões de seguidores e carreiras estabelecidas ganhem um novo impulso de visibilidade, entrando nos assuntos mais falados do Twitter e recebendo ampla cobertura da imprensa, lembra a professora Carolina Terra, da Cásper Líbero. Essa exposição, ela acrescenta, pode vir para o mal ou para o bem, gerando a perda de contratos e o cancelamento de shows, como no caso da ex-BBB Karol Conká, ou um aumento de credibilidade, como aconteceu com Juliette, outra ex-BBB.
Num mercado em que artistas são marcas valiosas, geridos como empresas, ou então contratados para ocuparem cargos em fintechs, como Anitta, o risco de emitir uma opinião é calculado. "Quando a Anitta faz um post desse, ela já sabe que boa parte da comunidade que a segue vai sair em defesa dela, porque pensa da mesma forma. É claro que vai ter um monte de 'hater' ali, mas a própria comunidade dela faz esse bate-boca automaticamente", afirma Terra, acrescentando que uma opinião do tipo pode, sim, afastar o público mais conservador.
Mas é provável que o número de fãs que clique em deixar de seguir não cause grande impacto na imagem de alguns dos músicos mais populares do país, segundo a gestora de crise Patricia Teixeira, autora de livros sobre o assunto. Ela afirma que a perda de seguidores é uma avaliação feita por marcas ao planejarem uma estratégia polêmica e que quem se retira talvez já não fizesse sentido para esses artistas.
Além disso, acrescenta a gestora, uma opinião polêmica pode trazer uma nova leva de fãs, já que perfis em redes sociais tendem a atrair pessoas com interesses em comum, "assim como as igrejas, o maior exemplo de rede social".
Depois de seu post em cima do muro, Ivete Sangalo viu seu índice de popularidade digital cair 24% -de 52,1 para 39,5-, mas a postagem seguinte, claramente contra o governo, fez com que o índice subisse 51% -de 39,5 para 59,6-, atingindo uma popularidade superior à que ela tinha antes do episódio, segundo um estudo da Quaest, empresa de pesquisa de dados. Já Anitta conseguiu aumentar sua popularidade com seu posicionamento.
"Se a Ivete não tivesse se posicionado e deixado o assunto rolar, provavelmente acumularia vários dias seguidos de reputação negativa", afirma o cientista social e CEO da Quaest, Felipe Nunes.
Reputação à parte, ambas as cantoras estimularam as pessoas a pensarem politicamente, acrescenta Teixeira, a gestora de crise. "É aquela velha frase -futebol, política e religião a gente não discute. Começar a discutir política é rico para o nosso futuro. Precisamos falar de política." Ela lembra que a maneira com que os artistas se expressam é geralmente de fácil compreensão por todos, independente do nível de instrução, e que eles podem impactar inclusive o voto das pessoas.
Para se ter a dimensão, somadas, Anitta e Ivete Sangalo têm 87,2 milhões de seguidores no Instagram, o equivalente a 41,1% da população brasileira. Xuxa tem 2,6 milhões de seguidores no Twitter, e Djavan soma, nas duas plataformas, cerca de 1,7 milhão.
Por outro lado, tanto Terra quanto Teixeira concordam que é mais seguro se posicionar contra o governo agora do que seria nas eleições de 2018. O cenário atual é de boa parte da opinião pública crítica ao presidente, com protestos em todo país, CPI da Covid em andamento e mais de meio milhão de mortes por coronavírus. "A tendência de você não ser cancelado é muito maior", observa Terra, da Cásper Líbero.
Nesse contexto, não marcar posição clara parece ser a decisão que mais gera críticas a um artista, como aponta Roale, a pesquisadora, lembrando o exemplo de Juliana Paes. No início de junho, a atriz fez um vídeo no qual dizia não querer ser colocada "em nenhum desses dois polos" da política brasileira. "Ela acabou levando paulada dos dois lados", diz Roale.
A pressão para que os artistas se manifestem está também ligada ao fato de muitos de seus pares terem morrido durante a pandemia, o que acabou sendo entendido pela classe como uma ausência de políticas públicas em relação à Covid, ressalta Gisele Jordão Costa, coordenadora do curso de cinema da Escola Superior de Propaganda e Marketing de São Paulo. Segundo ela, a morte do ator Paulo Gustavo foi o estopim da cobrança de posição entre os artistas.
A mensagem é que "quando você não se posiciona, você está a favor do que está acontecendo. Se a gente entender que o não posicionamento num momento de distensão forte também é um posicionamento, talvez seja melhor a gente assumir o que pensa."