A obra dos Racionais MC’s ecoa há décadas como uma das principais produções artísticas não só do rap brasileiro, mas entre todos os estilos musicais. Cronistas da realidade da periferia paulistana, o quarteto composto por Pedro Paulo Soares Pereira (Mano Brown), Paulo Eduardo Salvador (Ice Blue), Edivaldo Pereira Alves (Edi Rock) e Kleber Geraldo Lelis Simões (DJ KL Jay) já foi tema de muitas produções artísticas e culturais, como documentários, livros autobiográficos e muitas outras obras. Atualmente, desperta a atenção, também, dos estudos acadêmicos de diversas áreas do conhecimento no Brasil.
Os “quatro pretos mais perigosos do Brasil” e a carreira do grupo são o tema do livro “Racionais MCs: entre o gatilho e a tempestade” (Editora Perspectiva, 320p.), organizado por Daniela Vieira dos Santos, do Departamento de Ciências Sociais (CLCH) da UEL, e por Jaqueline Lima Santos, professora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
A dupla organizou o livro em cinco sessões, que tratam de temas-chave para compreender a carreira diversa, multifacetada, contraditória e rica dos rappers paulistanos: História e Historiografia do Grupo; Raça e Masculinidades; Estética e Poética; Produção das Desigualdades e Transformações e Mercado da Música Rap. Ao todo, o livro conta com 12 artigos, escritos por pesquisadores de várias áreas das ciências sociais e humanas.
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Já inseridos na cena do hip hop paulistano, Mano Brown e Ice Blue, moradores da Zona Sul e amigos desde a infância (suas mães eram amigas de terreiro), encontram-se com Edi Rock e DJ KL Jay, que vieram da Zona Norte, no Centro da cidade, nos fins dos anos 1980. O quarteto frequentava pontos tradicionais da cultura hip hop, como a Galeria do Rock e arredores do centro velho, onde encontrava vinis de artistas negros estadunidenses, lojas de acessórios, salões de cabeleireiro e outros pontos que exalavam a cultura suburbana do hip hop. O centro paulistano tinha tanta importância que Brown comenta que os quatro saíam da periferia, onde só se viam “lama e violência”, para o Centro, local das “luzes”. “Ir ao Centro era como ir a Nova York”, destacou o rapper, no documentário “Racionais: Das Ruas de São Paulo pro Mundo” (Netflix, 2022).
Outro point da maior importância era a Estação São Bento, onde eram realizadas as competições de break. Os bailes blacks, lotadíssimos de jovens viciados no groove frenético de artistas do soul como James Brown e Curtis Mayfield, não comportavam competições de passos de break. Os jovens precisavam de espaço, o que só o largo pátio da São Bento, por onde passava a estação da Linha Azul do Metrô, poderia proporcionar. Além de tudo isso, era aberto à população periférica e um ponto de encontro de fácil acesso e passagem.
“A princípio, (o Largo São Bento) era um local frequentado pelo Brown e pelo Blue, mas, depois, KL Jay Edi Rock também foram para lá. Foi ali, também, que eles se encontraram, com a articulação do produtor Milton Salles”, comenta Daniela Vieira. Salles, à época um produtor musical de bandas de reggae, encontrou um certo “DC Brown” na região, em um momento que ficou conhecido como o “Marco Zero” do rap no Brasil.
Estilo cachorra?
Um dos pontos bastante polêmicos quando se trata dos Racionais é a relação dos artistas com temas envolvendo raça e masculinidades. Não são poucas as letras que retratam mulheres de forma objetificada, fato que até já rendeu desculpas de Mano Brown ao público (“tem música que eu não toco mais, não. Se liga no momento do Brasil. Se tocar essa, as negona vão me linchar”). “Além disso”, avalia Daniela, “é importante ressaltar que, hoje, eles não pensam da mesma forma. O movimento de mulheres também não aceita mais (essas letras)”.
De forma bastante curiosa, a pesquisadora lembra que as mães são retratadas nas letras do grupo como mulheres praticamente “santas”, “redentoras” e “puras”, bastante distantes de mulheres como as descritas em canções como “Mulheres Vulgares” (Holocausto Urbano, Boogie Naipe, 1990): traiçoeiras, interesseiras e libertinas. “Deveriam estudar isso, inclusive”, ressaltou a pesquisadora. São fartas as metáforas que relacionam as mães a santidades de religiões diversas, desde o tradicional “santa” do catolicismo ao “madame nagô” das religiões de matriz africana.
Porém, o que explica a identificação das mulheres periféricas com o grupo? Daniela vê essa identificação de uma forma contraditória, porém compreensível. “Vejo, por um lado, que há uma forte identificação com a raça e com a classe, pontos que unem as mulheres ao homem negro periférico”, pondera, ao mesmo tempo em que lembra que elas enxergam o repúdio às letras e comportamentos machistas. “É como diz o (Stuart) Hall (teórico jamaicano expoente dos Estudos Culturais): existe um ‘jogo de identidade’, pois ora prevalece a classe e a raça, ora prevalece o gênero”, explica.
Vi um pretinho, seu caderno era um fuzil
O retrato do homem negro periférico enquanto um resultado lógico das políticas de exclusão social, da ausência do Estado e de políticas públicas, também é bastante retratado na obra. Segundo Daniela, é uma das retratações mais comuns da “masculinidade” do homem negro e periférico: um “criminoso em potencial”, fruto do racismo ao qual é submetido cotidianamente. Em várias de suas letras, Brown afirma que, “contrariando as estatísticas”, a juventude periférica deveria contornar o caminho do crime, com auxílio dos estudos, de boas companhias e longe das drogas e do tráfico.
As transformações sociais pelas quais o Brasil passou, desde o início do grupo, nos anos 1990, até a consecução do álbum Cores e Valores, em 2014, explicam boa parte da guinada na produção cultural e nas letras do grupo. O Brasil dos anos 1990, marcado pela saída da Ditadura Civil-Militar e ainda com baixíssimos índices de desenvolvimento social, educacional e humano, era terreno farto para a caneta e o caderninho dos rappers. Pouco depois da gravação de “Sobrevivendo no Inferno” (Cosa Nostra, 1997), Brown chegou a afirmar que “não era artista, mas fazia armas. Era terrorista”. “O rap realmente era encarado como uma arma”, afirma a cientista social.
A letra de um dos raps mais conhecidos do álbum, inclusive, foi escrita por um detento. “Diário de um detento”, uma narrativa forte e expressiva sobre o cotidiano de um preso numa cela em São Paulo, foi escrita à mão por Jocenir Prado, o “Miro”, num presídio em Avaré, interior paulista. Em visita ao local, Brown pegou do detento a letra e transformou em música, dando origem a um ícone do rap brasileiro (veja vídeo ao lado).
Eu compro
Com a entrada no século XXI, os Racionais MC’s passam por uma guinada, assim como o Brasil. Inserida no mapa do consumo via endividamento e pela liberação de crédito, a favela passa a consumir, o que mudou – e muito – a forma com a qual o quarteto encarava a relação entre arte e engajamento político. “A estética do grupo mudou muito nos anos 2000, com a melhora das condições de vida da população da favela”, comenta a pesquisadora.
O auge do giro foi o lançamento de “Nada Como um Dia Após o Outro Dia” (Cosa Nostra, 2002), que trouxe temas como o consumo e a ostentação em pauta, algo contrastante com o clima obscuro e pesado de “Sobrevivendo no Inferno”. “Percebo que há uma mudança do status social do grupo que é evidente. Pois a periferia também mudou: não é mais aquele clima de tragédia, de genocídio. O poder de consumo aumentou”, avalia. O grupo foi bastante criticado à época por setores mais “puristas” do rap, que denunciavam um suposto “esquecimento” das raízes e exaltação a um modo de vida distante da grande maioria dos moradores de favela. “Como se a radicalidade do grupo tivesse declinado. Mas, aí, eles já se inserem na nova condição do rap no Brasil”, ressalta a professora da UEL.
Nova Condição do Rap no Brasil
A virada estética e poética dos Racionais não ocorreu somente com o grupo. Foi, antes, um movimento evidenciado por Daniela no que chamou de Nova Condição do Rap no Brasil: a inclusão do estilo em segmentos sociais como as classes médias. Se, antes, elas tinham ojeriza à rima e aos scratches dos DJs dos bailes e associavam rap a “música de bandido”, passaram a lotar casas de shows em bairros grã-finos do “outro lado da ponte”, como o Morumbi, apenas 10km distante do Capão Redondo de Brown. Conforme o estilo começou a dialogar com outros ritmos e batidas, caiu nas graças da juventude em álbuns como “Pra quem já mordeu um cachorro por comida, até que eu cheguei longe…” (2009), de Emicida, ou “Nó na orelha” (2011), de Criolo. Algo, no mínimo, impensável quando surgiram grupos como Facção Central e RZO, nos fins dos anos 80 e início dos 90.
A virada dos anos 2000 representa, também, uma profissionalização bastante acentuada para o grupo. Em Cores e Valores, última produção, as músicas passam a ser mais curtas, algo antes ignorado em álbuns que continham poucas faixas de 6 ou até 11 minutos. “Uma música desse tamanho pode ser reproduzida nas rádios”, emenda a pesquisadora. Os samples de James Brown, The Bar-Keys, Tim Maia e Jorge Ben Jor, herança dos bailes blacks do Centro, também saíram de cena para a entrada de modernos beats eletrônicos.
“É a busca pela perfeição, tanto que o grupo foi gravar em Nova York (no Quad Record Studios, após iniciar a produção no estúdio Maraca, em São Paulo). O diálogo com outros estilos além do hip hop traz essa abertura para o que eu considero como a nova condição do rap”, finaliza a pesquisadora.
Uma carreira permeada por mudanças, que passa da denúncia ao genocídio negro e à violência policial, a falta de oportunidades e o racismo, à autorreflexão sobre a melhora das condições de vida dessa população, sem esquecer das origens. Os Racionais MC’s retratam desde a vida pregressa de um “corpo semi-nu jogado no lixão em São Paulo, a última a abolir a escravidão” até a trilha para o sucesso e o dinheiro pelo rapper negro, o qual, “mesmo conseguindo pagar, ainda vão desconfiar”, agindo como historiadores da condição do sujeito periférico e negro no Brasil. “Racionais MCs: entre o gatilho e a tempestade” reflete sobre as várias facetas do grupo, como um dos pontos de partida necessários para a produção de muitas outras obras sobre a “Fúria Negra” paulistana.
Serviço
Racionais MCs: entre o gatilho e a tempestade
Editora Perspectiva, 320p.
Organização: Daniela Vieira dos Santos e Jaqueline Lima Santos.
Valor: R$69,90.