Quadrinhos

Um amargo sorriso em ''Watchmen - O Filme''

31 dez 1969 às 21:33

Curitiba - Antes de começar a dizer minhas impressões sobre ''Watchmen - O Filme'' é preciso estabelecer um parâmetro válido para encontrar o equilíbrio que tanto prezo em opiniões especializadas no setor cultural. As adaptações de quadrinhos, que dominaram os blockbusters dos últimos verões, normalmente são avaliadas em duas correntes de pensamento entre os pesquisadores da nona arte: a linha ''flexível'' e a dos ''puristas''.

Para ilustrar melhor essas duas formas de ver as adaptações, vou usar como exemplo o filme ''Sin City'', de Robert Rodriguez. O longa é uma versão literal do quadrinho no cinema. E daí, a pergunta: como uma história consagrada em uma linguagem pode receber contribuições ao ser interpretada em outra?


Na visão ''flexível'', o grande mérito de ''Sin City'' foi ampliar a abrangência de público, e, por que não, de incentivar a leitura da obra original. Gerar novos leitores é preocupação constante no mercado de quadrinhos e isso por si só já é um grande mérito.


No entanto, os ''puristas'' enxergam de outra maneira: a redundância desgasta o material e a má interpretação deturpa a idéia original. Em ''Sin City'', por exemplo, ninguém lembra da trilha sonora, algo que, se fosse bem trabalhada, seria realmente uma contribuição do cinema para os quadrinhos, uma colaboração técnica de uma linguagem para a outra.


O ideal, então, seria o equilíbrio entre essas duas correntes de pensamento, algo que, se fosse exemplificado por outra adaptação, seria então ''O Anti-Herói Americano''. Quem já leu os quadrinhos de Harvey Pekar percebe que o filme se mescla à obra original em vários níveis e até mesmo ousa gerar uma simbiose entre as linguagens, com recursos técnicos de ambas nona e sétima arte. Sem contar que dá vontade de ler e reler as revistas.


Dito isso, onde se encaixa ''Watchmen - O Filme''? A meu ver, a adaptação de Zack Snyder carrega uma aura ''purista'' mas cede bastante ao lado ''flexível'' na tentativa do diretor de arrebanhar mais fãs para a obra de Alan Moore e Dave Gibbons. As alterações realizadas para encurtar e deixar a narrativa mais fluída, além de um certo realce no romance entre Espectral e Coruja, são indícios disso.


Apesar da redundância e da distância entre essa interpretação e os vários temas explorados na obra original, é possível enxergar nos momentos ''videoclípecos'' de Snyder - como na sequência de luta inicial na morte do Comediante - e no cuidado com a edição de som e a trilha sonora - as músicas foram selecionadas com cuidado para interagir como mais um elemento de narrativa - uma contribuição para a maxissérie impressa.


No final das contas, seria heresia dizer que o impacto de ''Watchmen - O Filme'' será semelhante para as adaptações de quadrinhos o que ''Watchmen'', a HQ, foi para o setor impresso ainda em meados de 80. No entanto, seria uma mistura de pura chatisse e birra não admitir que quem não leu Moore e Gibbons e está acostumado a gostar de longas de ''X-Men'' e ''Homem-Aranha'' vai sair um pouco chocado com o que vai ver na sessão de Snyder.


E, olhando por esse ângulo, foi exatamente isso que aconteceu quando quem abria sorrisos ao ler os X-Men de Claremont ou o Aranha de John Romita Sr. e decidiu explorar ''Watchmen'' de Moore e Gibbons: continuou sorrindo, mas com um gosto um pouco mais amargo na boca.


A DESCONSTRUÇÃO DOS SUPER-HERÓIS


''A cidade tem medo de mim. Eu vi sua verdadeira face.'' O texto inicial do diário de Rorschach dá o tom de toda a maxissérie "Watchmen", que tem lançamento de sua adaptação cinematográfica em circuito nacional a partir de amanhã: trata-se de uma história de super-heróis sombria e complexa, que envolve temas como a Guerra Fria, Teoria do Caos e outros assuntos polêmicos, a exemplo de estupro e corrupção.


''Watchmen'', escrito pelo xamã/escritor britânico Alan Moore e desenhado pelo compatriota Dave Gibbons, fez sucesso não apenas por ter desconstruído para sempre o mito dos super-heróis bonzinhos e incorruptíveis; também elevou o patamar do conteúdo dos quadrinhos com excelentes textos direcionados ao público adulto e brincou com as possibilidades de narrativa, em tom cinematográfico.


A publicação foi divisora de águas na nona arte, já que decretou de vez o fim da Era de Prata dos quadrinhos, sepultou a inocência dos gibis. Depois de ''Watchmen'' e de ''Cavaleiro das Trevas'' - que coincidentemente voltam a fazer barulho juntos -, nada mais foi o mesmo nas revistas de super-heróis.


'''Watchmen' foi o 'Cidadão Kane' dos quadrinhos, a obra que reformulou o gênero de super-heróis. Nesse sentido, pode ser também comparado a 'Dom Quixote', que desconstruiu os cavaleiros medievais. Se isso já não bastasse, também revolucionou ao trazer temas de vanguarda, como a teoria do caos, para os quadrinhos'', argumenta o quadrinhista e professor Gian Danton, que no congresso de comunicação Intercom de 1995, na Universidade Estadual de Londrina, apresentou grupo de trabalho especializado na obra de Moore e Gibbons. Danton atualmente dá aulas em Macapá (AP).


''Ali o Alan Moore mostrou, há 20 anos, que dava pra fazer quadrinho adulto com personagens que até então eram para crianças. É uma releitura de personagens clássicos, a história que jamais fariam com o Superman ou o Batman'', destaca o quadrinhista José Aguiar. Os personagens de ''Watchmen'' foram baseados em criações da Charlton Comics, adquirida pela DC Comics, e que viraram posteriormente heróis atualmente conhecidos como Besouro Azul, Questão e Capitão Átomo, entre outros.


Como uma obra hermética, simétrica, considerada perfeita, uma unanimidade entre os leitores, poderia ser ainda melhor, em outra linguagem? Apesar de enxergarem a adaptação com bons olhos, os especialistas concordam que o impacto do filme não será para o cinema o que a série foi para os quadrinhos.


''Alan Moore jura que é impossível adaptar 'Watchmen' para o cinema. De fato, é uma tarefa árdua. 'Watchmen' definiu em muitos aspectos a linguagem dos quadrinhos. Diferente de outras obras, que foram procurar inspiração no cinema, 'Watchmen' procurou a essência nos quadrinhos'', afirma Danton. ''O filme vai cumprir sua missão de chamar a atenção para a obra original'', complementa.


''Acho que não vai ter o mesmo impacto que a revista mas percebo que o filme etá sendo feito para ser o mais fiel possível. Espero que ele funcione de uma vez só, que as pessoas sintam na primeira vez a essência da história'', comenta Aguiar.


''Watchmen'' mudou a história dos quadrinhos e por isso sua adaptação é aguardada com expectativa pelos fãs, que, no final das contas não são apenas os 'fanboys': em 2007, a DC Comics vendeu mais de 200 mil exemplares e no ano passado imprimiu mais um milhão de cópias. Se o filme foi então dirigido com privilégios para esse ''seleto grupo de leitores'', o cineasta Zack Snyder deve fazer sucesso.


ALTAMENTE RECOMENDADOS


Watchmen - Edição Definitiva: A Panini Comics lança no Brasil a versão ''absolute'' da DC Comics, com formato diferenciado (27,5 x 18,5 cm), papel especial em 460 páginas, coloridas novamente por John Higgins, e outros extras. A ''bíblia'' só não vem com a caixa protetora da edição gringa e sai por R$ 120. A Panini relança a história também em dois volumes menores por R$ 28,90 cada.


Os Bastidores de Watchmen: O desenhista Dave Gibbons participou e acompanhou todo o processo de adaptação cinematográfica e transmite suas impressões aos leitores. A edição, com bela identidade visual criada pelos designers Chip Kidd e Mike Essle, sai no Brasil pela editora Aleph, com 280 páginas e capa dura, no formato (20,8 x 27,6 cm), a R$ 124.


Contos do Cargueiro Negro: Para os fãs é quase impossível dissociar as metáforas da história lida por um guri ao lado de uma banca de revistas, os ''Contos do Cargueiro Negro'', com a própria trama de "Watchmen". Como o diretor Zack Snyder sabe bem disso, resolveu colocar essa narrativa paralela em um desenho animado. O disco tem 2 horas e 40 minutos com mais alguns extras e sai por US$ 27.95 (DVD) e US$ 35.99 (Blu-ray), no dia 24 de março nos Estados Unidos, ainda sem previsão de lançamento nacional.


CITAÇÕES DE ALAN MOORE SOBRE WATCHMEN


'''Watchmen' usou os clichês do formato de super-heróis para tentar discutir noções de poder e responsabilidade em um mundo a cada dia mais complexo.''


''Nós tratamos esses quase ridículos personagens superhumanos mais pelo lado humano do que pelo lado ''super''. Usamos como símbolos de diferentes tipos de seres humanos comuns ao invés de diferentes superseres.''


''Acho que 'Watchmen' ofereceu possibilidades de como nós podemos perceber o ambiente ao nosso redor, assim como as interações e relações interpessoais nesse ambiente.''


Alan Moore, no documentário ''The Mindscape of Alan Moore'', de 2003.

O material citado acima pode ser encontrado em Curitiba na Itiban Comic Shop: Av. Silva Jardim, 845. Fone: (41) 3232-5367.


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