Segundo a agência de notícias Folhapress, o Papa Bento XVI disse, na França, quando discursou ao lado do Presidente francês, Nicolas Sarkozy, que a religião e a política devem estar abertas uma para outra. Para o Papa é necessário se tornar mais ciente do papel insubstituível da religião na formação de consciências e na criação de um consenso ético básico dentro da sociedade. Há, porém, na França, uma estrita separação entre a Igreja e o Estado, por isso o pedido de reconciliação.
O nosso assunto, no entanto, não é religião nem política, e sim Gramática Portuguesa. O mote deste texto é o título do artigo: Papa pede reconciliação de fé e política, que contém o substantivo reconciliação, cujo significado é ato de reconciliar(-se), que, por sua vez, significa estabelecer a paz entre duas partes, fazer as pazes, congraçar(-se), harmonizar(-se), conciliar(-se). O uso de "(-se)" indica que o verbo pode ser pronominal: reconciliar ou reconciliar-se.
Quando li o título, senti certo estranhamento, mas entendi o que o autor quis transmitir: o Papa pediu que voltasse a haver, na França, harmonia entre a Igreja e o Estado. A comunicação, portanto, foi efetivada satisfatoriamente. Por que, então, o estranhamento? Explico: eu sou professor de Gramática da Língua Portuguesa (ou Fiscal da Gramática, como já me chamaram no blog coletivo Tipos); sempre estou atento aos mínimos detalhes gramaticais de tudo o que leio. Notei que a conjunção e poderia causar duplo sentido à oração, pois o Papa poderia ter pedido duas coisas: "reconciliação de fé" e "política". Na frase apresentada, reconheço que foi absurdo pensar isso, mas em outras construções com o mesmo verbo e com o mesmo substantivo, a ambigüidade pode de fato ocorrer. Por isso, deve-se usar com muita atenção tal conjunção.
Li mais atentamente o título, analisei sintaticamente o período e constatei que o problema residia no substantivo reconciliação. Vamos analisá-lo com mais profundidade.
Antes, porém, quero esclarecer que a minha intenção não é corrigir o autor da frase, mas alertar o leitor quanto ao uso da variedade lingüística adotada como norma institucionalizada, principalmente aqueles que se submeterão a algum concurso que exija o uso da língua padrão. Vamos lá, então:
Segundo o Dicionário Prático de Regência Nominal, de Celso Pedro Luft, da Editora Ática, o substantivo abstrato reconciliação admite o uso das seguintes preposições:
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1- de (ou entre): estabelecer a reconciliação de pessoas, umas com as outras ou entre si.
Nesse caso, o substantivo regido pela preposição de tem de estar no plural: Por exemplo:
• Os ministros entraram em desavença. É responsabilidade do Presidente estabelecer a reconciliação deles (ou entre eles).
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2- com: estabelecer a reconciliação com alguém. Por exemplo:
• A Bolívia entrou em conflito com os Estados Unidos. Seria inteligente que os bolivianos procurassem estabelecer a reconciliação com os estado-unidenses.
Obs.: Estado-unidense é o adjetivo relativo aos Estados Unidos, segundo o dicionário Houaiss. O Aurélio registra o adjetivo estadunidense.
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3- entre ... e: estabelecer a reconciliação entre uma coisa e outra (ou entre uma pessoa e outra). Por exemplo:
• É preciso estabelecer a reconciliação entre os bolivianos e os estadunidenses.
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4- de ... com: estabelecer a reconciliação de uma coisa com outra (ou de uma pessoa com outra). Por exemplo:
• O Presidente Lula tentará estabelecer a reconciliação dos bolivianos com os norte-americanos.
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A frase usada como título do artigo "Papa pede reconciliação de fé e política" está, portanto, inadequada à língua padrão. Se o autor da frase quisesse usar o substantivo reconciliação segundo a variedade lingüística adotada como norma institucionalizada, deveria optar por entre ... e ou por de ... com, e não por de ... e:
• Papa pede reconciliação de fé com política.
• Papa pede reconciliação entre fé e política.
As duas frases são igualmente adequadas. Parece-me soar melhor, porém, a segunda: Papa pede reconciliação entre fé e política.
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