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Como uma vírgula acabou com um namoro.

31 dez 1969 às 21:33
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Conta-se que, em Palmeirinha do Vale, cidade de dezessete mil viventes, que
se situa perto de Santana do Arrebol do Oeste, havia uma professora de
Português, extremamente rígida, de nome Austeresa de Jesus. Ela era de tal
modo rigorosa para com os alunos que estes temiam encontrá-la mesmo no dia
a dia, na praça central, na mercearia, na farmácia. Dizem que ela interpelava
seus pequenos educandos, estivessem onde estivessem, sobre as mais
variadas regras gramaticais. Ai de quem não soubesse a resposta: ela sacava
seu caderninho rosa, anotava o nome da vítima, a pergunta que lhe fizera, a
resposta dada – ou a falta dela – e o quanto valia relativamente à nota escolar;
dependendo do grau de dificuldade da pergunta, ela diminuía 0,1, 0,2 ou 0,5 da
nota que o aluno tirasse na prova seguinte. Era um suplício para as pobres
crianças palmeirinhenses.

Quando Austeresa era jovem, mas já professora, enamorou-se de um rapaz
bem-apessoado, também professor de Português, de nome Telos Alonso. Ele,
porém, não tinha a mesma capacidade intelectiva dela nem a mesma habilidade
em sala de aula nem a mesma rigidez. Era um moleirão a bem dizer, que nem
gostava muito de estudos aprofundados. As maldizentes até comentavam que
ele não era homem para uma mulher como Austinha, como a chamavam
carinhosamente.

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O namoro entre eles durou exatamente onze meses e vinte e sete dias. O
estopim para o término do relacionamento foi uma cartão que ele lhe mandara
no dia dos namorados em que escrevera "Para a minha namorada Austereza de
Jesus". Ao ler esses dizeres, quase teve uma síncope; chegou a perder o juízo.
Pegou de uma caneta e imediatamente lhe escreveu uma pequena carta, em
que dizia:

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"Telos Alonso, é de conhecimento geral em Palmeirinha que tolero os maiores
sofrimentos, que suporto as maiores provações. É, no entanto, também
comentário corrente que há duas situações que jamais enfrentarei: traição e erro
gramatical. E tu, meu ex-amado, acabaste de cometer ambos: tu, professor de
Português, sabes muito bem (ao menos deverias saber) que os nomes próprios
femininos formados pela posposição do sufixo –esa ao radical se
escrevem com S, não com Z. És meu namorado há quase um
ano e ainda erras meu nome, trocando letras? Na realidade, não me importo
tanto por errares meu nome, mas importo-me – e muito – por errares a escrita
dele. Poderias ter trocado meu nome por Austerise; não me atenazaria tanto,
pois terias usado as letras adequadas: nomes femininos terminados em -
ise
se escrevem com S, como Denise e Anelise;
mas ignorar que se escrevem com –ês e –esa os nomes de
pessoas - como Inês, Teresa e Austeresa - os
adjetivos pátrios - como português e portuguesa - e os títulos
sociais ou nobiliárquicos, como camponês e camponesa,
marquês e marquesa - é demais para mim.

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Tu me chamas de princesa. Aliás, chamavas-me. Fico agora a pensar:
será que cada vez que me chamavas de princesa, tua mente ignara produzia a
palavra "princeza", com Z? Não suporto pensar nisso. Não suporto tal provação.


E a traição? Como a descobri? Tu mesmo te delataste: "...minha namorada
Austereza". Assim escreveste tu; sem vírgula. Assim escolheste me mostrar que
tens outra namorada. Não tiveste coragem de me contar pessoalmente,
contaste-me por subterfúgio, e eu entendi. Ao não colocares vírgula entre meu
nome e o substantivo que ele especifica, mostraste-me que não sou a única. Se
o fosse, ter-me-ias escrito "...minha namorada, Austeresa", com vírgula. Muito
perspicaz foste tu, dares-me a conhecer uma situação por meios gramaticais:
substantivo próprio que especifica substantivo comum, sem vírgula entre
eles, restringe
, ou seja, há mais de um: "Professora Austeresa",
sem vírgula, pois não sou a única professora, há muitas; mas substantivo
próprio que especifica substantivo comum, com vírgula entre eles, explica
,
ou seja, só há um: "...minha namorada, Austeresa", com vírgula; eu
seria a única, mas não o sou; sei-o agora.

Aliás, nem me importo mais com o namoro. Mesmo não tendo havido traição
alguma, não quero mais a ti como namorado, pois dois erros de Português em
apenas uma frase, cometidos por um ‘professor de Português’ é demais para
mim. Adeus."
--------------------------
Nota do autor: Isto nem Austeresa atinou: o substantivo telo, na cidade
de Beira, em Moçambique, é usado como sinônimo de jumento; e
alonso, em uso informal, significa parvo, tolo, pateta.
--------------------
Dúvidas? Mande-me um e-mail.
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