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Entre a sanidade e a loucura

Carlos Eduardo Lourenço Jorge - Especial para a Folha de Londrina
25 jan 2002 às 17:24
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Quando um filme desafia o mecânico sedentarismo do espectador e estimula inusitados exercícios cerebrais, recomendá-lo é preciso. E se ainda o rótulo de procedência for ‘made in USA’, e no elenco da produção milionária transitar um megastar com salário de oito dígitos, então é hora de entrar na fila e trocar o voto de confiança pelo ingresso. Em ‘Vanilla Sky’, com lançamento em todo o país, está o convite – quase a necessidade – para compor um complexo quebra-cabeças. Encaixada a derradeira peça, a recompensa terá sido um prazer mental ultimamente escasso no mercado.
‘Vanilla Sky’ é uma refilmagem muito próxima do original espanhol ‘Abre los Ojos’ (somente em VHS nas locadoras brasileiras, com o título arbitrário de ‘Presa na Escuridão’), experiencia dark que o diretor Alejandro Amenábar realizou em 1997 com elementos de ficção científica, comédia dramática, romance e mistério. Amenábar, que recentemente ganhou livre transito internacional com o thriller sobrenatural ‘Os Outros’, tem uma sensibilidade natural para este tipo de argumento desde seu filme de estréia, ‘Tesis’, brilhante suspense hitchcockiano sobre ‘snuff movies’ (filmes de ficção com assassinatos reais) como matéria de estudos de estudante de comunicação. Já o diretor-roteirista Cameron Crowe, que assina o remake, deu um tempo em suas histórias carregadas de humanismo, emoções realistas e nostalgia (‘Jerry Maguire - A Grande Virada’, ‘Quase Famosos’) e mergulhou somente de cabeça num universo ficcional que mistura realidade e fantasias oníricas, a maioria delas pesadelos de respeitável complexidade – ou não seriam apenas enigmáticos pesadelos?
Interpretado com boa dose de risco por Tom Cruise, David Aames é alguém que gosta de se olhar no espelho. E por que não? Playboy boa pinta e vaidoso, herdeiro de um império internacional de publicidade, aos 33 anos ele é o tipo de garotão rico e mimado que dirige um Porsche negro e convida todo o time olímpico de ‘snowboarding’ para sua festa de aniversário. Em suas próprias palavras, ele está ‘vivendo o sonho’, sonho que inclui, entre tantas outras coisas, uma casual relação com a top model da vez, a possessiva e potencialmente psicótica Julie Gianni (Cameron Diaz). A única preocupação de Aame são alguns terríveis pesadelos: na estonteante abertura do filme, primeira de várias sequências de sonho, o personagem corre em pânico por uma Times Square completamente deserta.
As coisas mudam repentinamente quando, durante uma festa, David flerta com Sofia (Penélope Cruz, repetindo o papel da versão de Amenábar e, pelo que se ouve, recém-saída de uma aula de inglês – sua pronúncia, forçada e irritante, compromete o personagem) e termina no apartamento da moça, com quem inicia um romance mais sério. Quem espera por ele na manhã seguinte é Julie, que lhe dá uma carona. Ela, no entanto, irada e ressentida, tem tudo preparado para um mergulho suicida numa ponte do Central Park. Dias depois, David sai de um coma com parte do rosto desfigurado, e o melhor que a equipe médica pode fazer é dar a ele uma máscara de látex, cor da pele. E é a partir deste momento que a história toma rumos que o espectador deve seguir, por conta e risco. Assim como David, não se sabe o que é e o que não é real, se ele está morto, se Julie morreu ou por que David está sendo interrogado por um psiquiatra (Kurt Russell) como um suspeito de assassinato.
Neste entretenimento de alta voltagem, que corteja o thriller erótico de ficção científica e também não deixa de homenagear o Hitchcock de ‘Um Corpo que Cai’ e ‘Intriga Internacional’, o que se obtém ao final, além da chave que a platéia tanto deseja, é uma fábula sobre a fatuidade das aparências, da vaidade humana. À medida em que o filme abandona o mundo real e passa a explorar a vida como uma espécie de sonho que se sonha acordado, ‘Vanilla Sky’ (o título é referência a um quadro de Monet no apartamento de David em Manhattan, com um ‘céu de baunilha’) parece indagar sobre vida eterna e eterna juventude. É também possível que o filme trate da culpa e também do poder da mente inconsciente. Outro subtema a ser considerado é o da redenção, ou atráves do amor verdadeiro ou do exercício quase heróico da força de vontade.
Sobre o referido desafio de Cruise, às vésperas de ingressar na casa dos 40, pode ter ressonâncias autobiográficas – até quando Hollywood vai insistir no retrato yuppie do ator? Não é à toa que ele há três anos aceitou a participação antiglamourosa em ‘Magnólia’ e agora aparece como produtor de ‘Vanilla Sky’. O diretor Cameron Crowe, por sua vez e como de costume, acrescenta um trilha que funciona como um personagem com alma – Peter Gabriel, R.E.M., o melhor Bob Dylan e uma canção especialmente composta por Paul McCartney. De alguma forma um tanto onírica, a musica serve como guia ao coração de ‘Vanilla Sky’.
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