Curitiba - ''Quem quiser nascer precisa destruir um mundo''. A citação às palavras do escritor alemão Herman Hesse não poderiam resumir melhor V de Vingança, obra fundamental para a valorização dos quadrinhos, que assim definitivamente ganhavam status de arte e literatura. Alan Moore e David Lloyd plantaram ali, de 1981 a 1988, a semente para encerrar de vez, em uma grande editora, a visão de que a Nona Arte era apenas destinada ao público infanto-juvenil.
V de Vingança trata, acima de tudo, sobre a liberdade e o que pode resultar na falta dela. Em meio a uma Inglaterra comandada sob regime opressor, surge um revolucionário que pretende terminar o que o conspirador Guy Fawkes e seus aliados não conseguiram: explodir o Parlamento inglês no dia 5 de novembro. Mas, após iniciar seu plano, fica óbvio que o protagonista não apenas quer protestar contra o governo, como também saborear uma complexa e bem elaborada vendetta.
Antes de mais nada, faz-se necessário explicar quem é Guy Fawkes, tão citado e ponto de partida para a obra de Moore e Lloyd. Fawkes, um extremista católico, foi escolhido a iniciar um incêndio no Parlamento inglês, em uma conspiração que pretendia assassinar o rei James I. O monarca havia estabelecido multa aos que não comparecessem nos compromissos da igreja anglicana.
Mas o plano não deu certo porque um dos conspiradores acabou deixando escapar a informação sobre o atentado. Assim, Fawkes foi pego antes de concluir os planos, no dia 5 de novembro de 1605. Mais tarde, foi torturado e executado no dia 31 de janeiro. Depois disso, a data ficou conhecida na Grã Bretanha e muitos comemoram a rebelião proposta por Fawkes no dia 5 de novembro, com fogos de artifício.
Bem, voltando a V de Vingaça. V, o personagem principal, é inspirado em Fawkes e mostra, durante toda revista, um misto de sofisticação e inteligência com frieza e perturbação mental. Ao passo que revela conhecimento incomum sobre arte -sempre citando grandes autores, como Shakespeare, e rodeado de pinturas-, também demonstra um ódio mortal contra seus inimigos. Impiedoso, V não mede esforços para matar um a um e destruir o sistema com medidas extremas.
Em meio a isso, surge uma pequena garota, que passará por intensas mudanças durante a série e ajudará o leitor a entender um pouco sobre o misterioso e intrigante protagonista. Evey, que acaba sendo pega pelos homens-dedo da agência policial do governo, seria violentada e detida, não fosse a intervenção de V.
A partir daí, a garota partilha do interesse em saber mais sobre seu herói e até mesmo sobre sua própria vida, em uma jornada que vai acabar trazendo a liberdade, sob custa da destruição do mundo em que vive, justamente como disse Herman Hesse.
E, ao final de tudo, após saborear a vingança pela impunidade e aquelas coisas injustas que acontecem por aí, você provavelmente vai se fazer a seguinte pergunta depois da leitura: Quem é V?
Alan Moore ficou tentado a revelar sua identidade, entretanto, deu somente uma dica: ''Ele não é pai de Evey, a mãe de Whistler ou a tia de Charley. Daí em diante, você está por conta própria. Inglaterra Triunfa''.
Sete anos de espera - Alan Moore começou sua caminhada nos quadrinhos em 1980, quando contribuía para as revistas britânicas 2000 A.D. e Doctor Who Weekly. Começou a fazer V de Vingança em 1981, ao lado de Lloyd, em capítulos para a revista inglesa Warrior.
A Warrior acabou sendo cancelada no meio do caminho e o material ficou inacabado. Em 1988, a Vertigo/DC Comics encomendou o final da trama, que viria a ser publicada em 89 nos Estados Unidos. A edição chegou ao Brasil no início de 90, pela Editora Globo, em minissérie, com seis revistas. Em 98, foi reeditado pela Via Lettera, em dois volumes, e deve ser republicada em breve, com a chegada do filme, pela Panini Comics, num único livro, colorido, diferente das versões tupiniquins anteriores, em preto-e-branco.
Referências - Uma das coisas mais bacanas em V de Vingança é o número de referências sobre outras obras e acontecimentos históricos. Essas citações enriquecem a experiência da leitura e também ajudam a entender um pouco mais do universo proposto por Moore, que previa uma Inglaterra fascista em 1997.
Além das já citadas referências a Guy Fawkes, também é visível a influência de Shakespeare (trechos de MacBeth são lembrados mais de uma vez), de George Orwell (o clima de 1984 está presente em toda a história) e de outros tantos autores e até mesmo cantores, como Billy Holiday, a banda Black Uhuru e o selo Motown, como também filmes e cineastas, a exemplo de O Triunfo da Vontade e o diretor Edward Dmitrik. Sim, V de Vingaça também é cultura.