De Londrina
Especial para a Folha 2
Se a comunidade acadêmica de Hollywood tiver um mínimo de bom senso, os Oscar de melhor filme e direção já têm dono. Estréia hoje em lançamento nacional (no Paraná somente em Curitiba) a mais recente demonstração da maturidade criativa de Stephen Soderbergh, que também concorre ao prêmio de direção por ‘Erin Brokovich’. Poucas vezes, nos últimos tempos, o cinema soube apontar caminhos férteis e diversos como aqui. Neste seu décimo longa, Soderberg parece ter a fórmula: cinema social do século 21, entretenimento de princípio ao fim e uma fórmula de ótimo cinema.
Assumir tantos riscos significa muita lucidez, muita confiança e uma bem articulada linguagem narrativa. Soderbergh tem tudo isso de sobra – e mais o inteligente roteiro de Stephen Gaghan – para evar adiante em ‘Traffic’ um exame abrangente e penetrante do complexo fenômeno do tráfico de drogas, um dos mais alarmantes e intrincados problemas a infernizar a sociedade contemporânea.
O filme está contado a partir de três histórias principais, com suas tramas paralelas. Uma é a de um juiz de Cincinatti, Robert Wakefield (Michael Douglas), nomeado pelo presidente como o baluarte antidrogas, mas que descobre que sua filha adolescente (Erika Chirstensen) é dependente. Um outro relato é o do oficial mexicano (Benício Del Toro), que está por desmantelar em Tijuana um dos cartéis do tráfico. E por fim, Helena, uma jovem mãe, grávida (Catherine Zeta-Jones) vê seu futuro nebuloso quando descobre que o marido estava envolvido com o comércio de drogas.
Inspirado em minissérie televisiva do Channel 4 da BBC, difundida em 1989, ‘Traffic’ é um filme ambicioso em sua proposta. Soderbergh não quer apenas interrogar as maneiras como o problema tem sido encarado – principalmente como uma guerra que vem sendo perdida. A idéia é chamar a atenção para um ponto crucial: o barulho da guerra está desviando a atenção da sociedade do principal, isto é, atacam-se os sintomas mas a natureza do mal permanece intocada – interesses e comprometimentos diversos atuam para que o estado de coisas seja mantido.
‘Traffic’ é também ousado e original na forma como dispõe os elementos. A trama está organizada como uma espécie de mosaico de relatos que se cruzam em diversos momentos. E o olhar crítico está posto em níveis distintos, do macro ao microcosmo da droga. De um lado, o Estado, que define as políticas a seguir, as estratégias e trâmites que já se conhece. De outro, quem manda no negócio, os narcotraficantes encastelados em fortalezas, travestidos de prósperos empresários ou disfarçados sob o uniforme de seus presumidos inimigos. No meio, os homens que se expõem à ação perigosa, arriscando o pescoço a cada dia – de um lado ou de outro, às vezes com a linha divisória entre ambos muito tênue: são os trabalhadores braçais. E afinal os consumidores, vítimas principais.
De certa maneira, ‘Traffic’ seria a síntese entre ‘Operação França’ de William Friedkin, e ‘Nashville’ de Robert Altman: uma direção crispada aliada a uma interagente construção narrativa, com sua quase centena de personagens, a maioria se cruzando sem jamais se encontrar.
Esperto e sempre atento, Soderbergh prefere evitar qualquer didatismo. Embora politicamente correto, o filme não faz disso uma bandeira ou motivo de auto-orgulho. Por força do talento, o diretor é presença notável no desenho da narrativa, na textura dos planos. Ele vai e vem através de enérgica montagem de ações paralelas entre várias cidades e com personagens interconectados, excluindo tudo o que não é substancial. Mas em todo grande filme a forma não é o mais importante, e deve estar a serviço do relato. Que deve ser consistente e original, como em ‘Traffic’.
Com desenvoltura admirável, alternando a força documental com a tensão do ‘thriller’ policial, aliando ainda a agudez do perfil psicológico dos personagens, Soderbergh faz esplêndida amarração bilingue (inglês ou espanhol) das mais diversas situações. E ainda esbanja talento como operador de sua própria câmera (função assumida sob pseudônimo, por razões sindicais), misto de hobby e vocação. O trabalho com as cores é admirável e deve ser observado detalhadamente por suas conotações funcionais.
Os muitos acertos têm origem principalmente no roteiro de Stephen Gagham, também candidato a uma estatueta, e se confirmam e reforçam em um elenco tão compacto quanto impecável – à exceção de Michael Douglas ( em papel a princípio destinado a Harrison Ford), nem tão convicente quanto os demais. Mas pertence a Benício Del Toro – também de olho no Oscar – a melhor atuação do filme como um dos muitos seres que não podem lutar contra o que corre paralelo a seu destino. E também aqui ‘Traffic’ não deixa de surpreender de forma implacável. Nem os bons, nem os maus são retratados como outra coisa a não ser pessoas, jamais personagens.
‘Traffic’ vai ficar como exemplo de cinema em tempo integral e dedicação exclusiva. Um filme que, para o bem ou para mal, nos faz confrontar com a lógica estranha de um sistema que afinal é o nosso de cada dia. Longe de qualquer discurso maniqueista, e por sua realização sem falhas e seus personagens tocantes, ‘Traffic’ se impõe como testemunha viva em total conexão com seu tempo. Nosso tempo.