Quando dois amigos são amigos de fato é preciso que haja transparência entre ambos. Parece que não foi o que ocorreu entre o ator Steve Martin e o diretor Shawn Levy, que vinham juntos de duas comédias deploráveis, ‘Doze é Demais’ e sua continuação.
O primeiro evitou dizer ao segundo que ele não tinha qualquer domínio sobre a fórmula da comédia slapstick, o popular pastelão. Por sua vez, Shawn escondeu de Martin que o ator não entendia nada de Inspetor Clouseau.
Assim iludidos, de costas e incomunicáveis, eles partiram em direções opostas para cometer este equívoco, deixando à critica a penosa missão de anunciar aos quatro ventos que esta nova ‘Pantera Cor de Rosa’ sofre do mal que costuma vitimar muitas comédias: a ausência de humor legítimo e inspirado.
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Desde sempre foi evidente a desvantagem deste projeto que parece ter nascido com intenções suicidas – e o ano inteiro de espera para o lançamento, depois do filme pronto, parece indicar que o fantasma da temeridade assombrou mesmo a produção.
Tratava-se, nada menos, de competir com a memória dos muitos momentos de pura genialidade criados pela dupla Peter Sellers/Blake Edwards nos anos 1960-70. Embora não produzindo obras-primas, a bem-amada série ‘Pink Panther’ deixou duas verdades dogmáticas: o talento e a habilidade de Edwards para escrever e dirigir comédias e a interpretação inclassificável de Sellers como Clouseau, um híbrido refinadíssimo de invenções ridículas e detalhes meticulosos.
Quatro décadas depois, esta nova versão da primeira ‘Pantera Cor de Rosa’ (houve outros oito títulos com o personagem) não é uma refilmagem, mas pretende ser uma prequela, tanto que por muito tempo o título provisório foi ‘O Nascimento da Pantera Cor de Rosa’.
A trama ambientada em Paris é inconseqüente, mas não é isto que compromete. Em Paris, o inspetor-chefe Dreyfus, que originalmente tinha os traços hilariamente ensandecidos (e imortalizados) do sempre grande coadjuvante Herbert Lom, desta vez aparece na pele de Kevin Kline.
Ele chama Clouseau para investigar o assassinato de um importante técnico de futebol - a viúva suspeita é a cantora interpretada por Beyoncé Knowles - e o desaparecimento do diamante Pantera Cor de Rosa. Claro que Dreyfus quer que Clouseau se dê mal para resolver o caso-sensação na mídia mundial, e assim ficar com a fama.
Daí em diante, o filme se dedica penosamente a seguir as tentativas de Martin de fazer graça às custas de Clouseau. O ator bem que tenta reeditar aquelas estúpidas ações investigativas e dedutivas que fizeram com justiça a glória de Sellers. Mas falta algo. E o que seria?
Na verdade, Steve Martin investe numa caricatura ridicularizada e grosseira do personagem, enquanto Sellers elaborou com requintes um ser naturalmente ridículo, um demolidor ao acaso, alguém portador de DNA trapalhão.
Com rara elegância no domínio do corpo como instrumento da comédia, ele subvertia fisicamente o mundo ao redor, devastava o cenário à sua volta e ficava tão mortificado quando impotente diante do caos provocado – e a tentativa subseqüente de consertar as coisas implicava em nova destruição, num processo muito semelhante àquele de Jerry Lewis em seus melhores títulos.
Outro ponto a considerar: Kline e Martin transitam numa mesma sintonia de comédia, o que eventualmente os coloca não interagindo, mas oponentes. Numa mesma cena, este tipo de confronto costuma ser fatal para o gênero.
Há alguns bons momentos isolados, como as tentativas de Clouseau-Martin de pronunciar a palavra hambúrguer. Ou a presença providencial do ótimo Jean Reno (que felizmente não precisa fingir a pronúncia francesa) no papel do gendarme assistente Gilbert Ponton. Ou ainda a música de Mancini, um clássico para a eternidade.
Mas absolutamente nada que justifique a informação publicitária da distribuidora de que o filme pretende ser uma homenagem a cômicos da estatura de Chaplin e Keaton. A diferença básica é que os mitos citados, e o próprio Sellers, sabiam que comédia é arte da precisão. E precisão é tudo que falta a este lamentável e dispensável ressurgimento de uma franquia de tão saudosa memória.