Comer, beber, viver. Isto significa muito mais do que apenas um dos bons filmes assinados pelo taiwanês Ang Lee, no momento sacudindo as platéias com seu festejado e mais recente título, ‘O Tigre e o Dragão’, na reta final do Oscar. Desde que o cinema rodou a primeira manivela em busca de imagens do homem comum em seu habitat natural, comer, beber, amar e viver estiveram na linha de frente das preocupações do olho da câmera. Atos sócio-fisiológico-existenciais aparentemente simples ganharam maior ou menor dimensão na tela, de acordo com critérios de prioridade no contexto das narrativas.
E como desde sempre ficou muito claro que bem amar e bem viver estavam associados aos prazeres da mesa, isto é, a bem comer e bem beber, o espectador passou a banquetear-se na sala escura em circunstâncias e companhias as mais diversas. A ele o cinema passou a servir, com frequência cada vez maior, alimento para o corpo e para o espírito em doses quase equivalentes. E os comensais, lotando as salas, vêm aprendendo não apenas o quê comer mas de que maneira devem compartilhar o alimento, seja à luz da fogueira no comboio dos colonizadores, nas bacanais romanas, nos almoços de domingo nos domínios da Cosa Nostra ou no irretocável banquete de Babette.
O cinema, desde os primórdios, vem mostrando como os costumes gastronômicos evoluíram ao longo da história. Vale dizer, o quê e como as pessoas comiam nas mais diferentes épocas. Tomemos por exemplo os decadentes romanos. Que comiam recostados, quase deitados. Isto nos tempos de ‘Quo Vadis’ (51). Mas na época de ‘Cleópatra’ (63) é outra história: o ar tem cheiro de tâmaras. Os egípcios, primeiros viticultores, há quase 3 mil anos condimentavam as aves com vinho e as verduras com anis. Para dar rigor a um dos filmes proporcionalmenrte mais caros e que mais prejuízos acumularam, o diretor Joseph Mankiewicz foi beber nas fontes de Heródoto sobre gastronomia egípcia.
Um dos mais famosos diálogos sobre comida da história do cinema está em ‘Spartacus’ (60), o colossal filme de Stanley Kubrick. A cena foi inicialmente cortada pela censura da época, e só há pouco foi reintegrada. O patrício Laurence Oliver tenta sutilmente seduzir o escravo Tony Curtis, utilizando frutos do mar – ostras versus caracóis – como metáfora para órgãos e papéis sexuais. Sexo e comida, a propósito, têm estreita e picante ligação, como se demonstrará mais adiante.
Para o cinema nunca existiu a palavra impossível. Nem em seu início. ‘Intolerância’ (1916), dirigido pelo pai da narrativa cinematográfica, David Griffith, foi a maior e mais cara produção do cinema mudo. Numa das sequências, 15 mil extras participam de um banquete em uma sala de 1.500 metros de largura entre as maravilhas da antiga Babilônia. Já no segmento sobre a bárbara Idade Média, os cavaleiros agarravam as patas de javalis com as mãos, devoravam de 20 a 30 pratos numa só refeição e bebiam até cair.
O ‘cinema entre panelas’, isto é, na cozinha, talvez tenha seu momento mais poético em ‘Como Água Para Chocolate’ (92). O diretor Alfonso Arau se inspirou nos ranchos mexicanos do século 19 e criou uma ambientação perfeita. Quase se pode sentir os aromas, os vapores que escapam das panelas. Durante todo o filme há a intenção bem sucedida de relacionar intimamente comida com o sexo, a alegria e o estado de ânimo. A alquimia que a heroína Tita prepara de codornizes em molho de pétalas de rosa é digna de qualquer antologia de receitas, e não apenas de aves, mas de celestiais especiarias afrodisíacas.
Para a censura, a comida sempre teve conotações sexuais. Segundo os sociólogos, os alimentos ultrapassam a barreira oral, entram em nossos corpos e se convertem em substância íntima, em nossa essência. Daí ser até compreensível que, nos anos dourados de Hollywood, os grandes estúdios não queriam saber de introduzir no universo culinário divas cintilantes como Joan Crawford, Bette Davis ou Greta Garbo. Glamour e fogão não se misturavam jamais, como a própria Marlene Dietrich narra em sua autobiografia. Conta ela que, ao chegar em casa uma noite, o amante Jean Gabin ficou furioso quando encontrou uma mesa de jantar singelamente preparada, enquanto ela fritava ovos na cozinha, sem nenhum artifício de estrela, ausente mesmo o misterioso olhar de ‘Anjo Azul’.
Mas o tempo passou e as atrações e os apetites mudaram. Se há duvidas, perguntem a Jack Nicholson, a quem uma Jessica Lange suja de massa de pão sobre a mesa da cozinha deixava louco na tórrida e mítica cena de ‘O Destino Bate à Sua Porta’ (80). A gastronomia e o erotismo chegam aos ‘yuppies’ com ‘Nove e Meia Semanas de Amor’ (86) e sua estética de videoclipe. O sujo Mickey Rourke dá cerejas em calda, morangos, champanhe, gelatina, pimenta, leite e mel, muito mel a uma Kim Bassinger de olhos vendados. Nos países do Oriente existe um ritual em que se derrama mel na palma da mão dos recém-casados, que devem lamber-se mutuamente antes de comer juntos pela primeira vez. Quem se lembra do filme sabe o que fez Mickey Rourke...
O diretor espanhol Bigas Lunas é uma espécie de sumo-sacerdote do binômio comida-sexo. Isto está explícito em ‘Jamon, Jamon’ (91), onde a atual coqueluche Penélope Cruz aparece com os seios enfiados numa ‘tortilla’ de batatas com cebola. Ou através de Valeria Marini às voltas com uma mortadela em ‘Bámbola’ (93).
Refinados banquetes não faltam ao tema, demonstrando o caráter e o estilo de uma época e de uma classe social. Em ‘A Idade da Inocência’ (93), Martin Scorsese deu cuidadosa ênfase aos detalhes gastronômicos, que desfilam ao longo do filme em sete refeições. Para ser fiel às preferências da aristocracia nova-iorquina foram consultados 4 mil livros de cozinha americana da época. Não por acaso a sala de jantar era o lugar de brilho social, na segunda metade do século 19.
Quem também passeia entre comidas e vinhos é o mordomo Anthony Hopkins em ‘Vestígios do Dia’ (93). Assustado com o acúmulo de detalhes para servir, selecionar a prataria, arrumar louça e copos nos lugares determinados pela etiqueta, o ator exigiu – e obteve – a assessoria de um profissional para os treinamentos. Ainda assim, peritos na matéria juram que Hopkins falhou em duas cenas em que deveria estar de luvas brancas.
Em ‘O Leopardo’ (63), obra-prima de Visconti, a descrição magistral da aristocracia tão familiar ao diretor, ele mesmo Luchino Visconti e Ebra, conde de Modrone. O momento máximo: a sequência do jantar final numa longa mesa onde são servidas lagostas cozidas, robalos ao molho, tortas de fígado e intermináveis manjares. Tudo preparado por 20 cozinheiros de diversos restaurantes italianos.
Entre os pratos típicos mais populares servidos pelo cinema com certeza está a pizza, na maioria das vezes servida ao molho ‘cosa nostra’. Presente em centenas de filmes, é no clássico neo-realista ‘Ladrão de Bicicletas’ (48) que ela ganha importante figuração simbólica. Diante do alimento fumegante que se oferece, desaparecem a tristeza e o cansaço depois do roubo da bicicleta. Já no mais recente ‘Faça a Coisa Certa’ (89), a pizzaria comandada por Danny Ayello é um microcosmo para Spike Lee discutir racismo e violência na América contemporânea.
E provavelmente não seja o prato típico do Alaska, mas a bota fervida que o esfomeado Carlitos e o amigo comem em ‘Em Busca do Ouro’ (1925) é uma das melhores sequências gastronômicas de todo o século 20. Com estilo de ‘grand gourmet’, Chaplin enrola os cordões como se fossem espaguetis e os devora com inefável prazer. Uma cena inesquecível, como memorável é também a exótica iguaria servida a Harrison Ford em ‘Indiana Jones e o Templo da Perdição’. Especialidade da Guiné – embora a ação do filme transcorra na Índia –, o cérebro quente e palpitante de macaco, comido no próprio crânio do bicho ainda vivo, é transgressão única que nem o herói Jones suportou. Esta prática cinematográfica, ao invés da extinção, foi antropofagicamente reciclada e restaurada, agora sob os cuidados do maitre ‘Hanniball’ (2001).
E como desde sempre ficou muito claro que bem amar e bem viver estavam associados aos prazeres da mesa, isto é, a bem comer e bem beber, o espectador passou a banquetear-se na sala escura em circunstâncias e companhias as mais diversas. A ele o cinema passou a servir, com frequência cada vez maior, alimento para o corpo e para o espírito em doses quase equivalentes. E os comensais, lotando as salas, vêm aprendendo não apenas o quê comer mas de que maneira devem compartilhar o alimento, seja à luz da fogueira no comboio dos colonizadores, nas bacanais romanas, nos almoços de domingo nos domínios da Cosa Nostra ou no irretocável banquete de Babette.
O cinema, desde os primórdios, vem mostrando como os costumes gastronômicos evoluíram ao longo da história. Vale dizer, o quê e como as pessoas comiam nas mais diferentes épocas. Tomemos por exemplo os decadentes romanos. Que comiam recostados, quase deitados. Isto nos tempos de ‘Quo Vadis’ (51). Mas na época de ‘Cleópatra’ (63) é outra história: o ar tem cheiro de tâmaras. Os egípcios, primeiros viticultores, há quase 3 mil anos condimentavam as aves com vinho e as verduras com anis. Para dar rigor a um dos filmes proporcionalmenrte mais caros e que mais prejuízos acumularam, o diretor Joseph Mankiewicz foi beber nas fontes de Heródoto sobre gastronomia egípcia.
Um dos mais famosos diálogos sobre comida da história do cinema está em ‘Spartacus’ (60), o colossal filme de Stanley Kubrick. A cena foi inicialmente cortada pela censura da época, e só há pouco foi reintegrada. O patrício Laurence Oliver tenta sutilmente seduzir o escravo Tony Curtis, utilizando frutos do mar – ostras versus caracóis – como metáfora para órgãos e papéis sexuais. Sexo e comida, a propósito, têm estreita e picante ligação, como se demonstrará mais adiante.
Para o cinema nunca existiu a palavra impossível. Nem em seu início. ‘Intolerância’ (1916), dirigido pelo pai da narrativa cinematográfica, David Griffith, foi a maior e mais cara produção do cinema mudo. Numa das sequências, 15 mil extras participam de um banquete em uma sala de 1.500 metros de largura entre as maravilhas da antiga Babilônia. Já no segmento sobre a bárbara Idade Média, os cavaleiros agarravam as patas de javalis com as mãos, devoravam de 20 a 30 pratos numa só refeição e bebiam até cair.
O ‘cinema entre panelas’, isto é, na cozinha, talvez tenha seu momento mais poético em ‘Como Água Para Chocolate’ (92). O diretor Alfonso Arau se inspirou nos ranchos mexicanos do século 19 e criou uma ambientação perfeita. Quase se pode sentir os aromas, os vapores que escapam das panelas. Durante todo o filme há a intenção bem sucedida de relacionar intimamente comida com o sexo, a alegria e o estado de ânimo. A alquimia que a heroína Tita prepara de codornizes em molho de pétalas de rosa é digna de qualquer antologia de receitas, e não apenas de aves, mas de celestiais especiarias afrodisíacas.
Para a censura, a comida sempre teve conotações sexuais. Segundo os sociólogos, os alimentos ultrapassam a barreira oral, entram em nossos corpos e se convertem em substância íntima, em nossa essência. Daí ser até compreensível que, nos anos dourados de Hollywood, os grandes estúdios não queriam saber de introduzir no universo culinário divas cintilantes como Joan Crawford, Bette Davis ou Greta Garbo. Glamour e fogão não se misturavam jamais, como a própria Marlene Dietrich narra em sua autobiografia. Conta ela que, ao chegar em casa uma noite, o amante Jean Gabin ficou furioso quando encontrou uma mesa de jantar singelamente preparada, enquanto ela fritava ovos na cozinha, sem nenhum artifício de estrela, ausente mesmo o misterioso olhar de ‘Anjo Azul’.
Mas o tempo passou e as atrações e os apetites mudaram. Se há duvidas, perguntem a Jack Nicholson, a quem uma Jessica Lange suja de massa de pão sobre a mesa da cozinha deixava louco na tórrida e mítica cena de ‘O Destino Bate à Sua Porta’ (80). A gastronomia e o erotismo chegam aos ‘yuppies’ com ‘Nove e Meia Semanas de Amor’ (86) e sua estética de videoclipe. O sujo Mickey Rourke dá cerejas em calda, morangos, champanhe, gelatina, pimenta, leite e mel, muito mel a uma Kim Bassinger de olhos vendados. Nos países do Oriente existe um ritual em que se derrama mel na palma da mão dos recém-casados, que devem lamber-se mutuamente antes de comer juntos pela primeira vez. Quem se lembra do filme sabe o que fez Mickey Rourke...
O diretor espanhol Bigas Lunas é uma espécie de sumo-sacerdote do binômio comida-sexo. Isto está explícito em ‘Jamon, Jamon’ (91), onde a atual coqueluche Penélope Cruz aparece com os seios enfiados numa ‘tortilla’ de batatas com cebola. Ou através de Valeria Marini às voltas com uma mortadela em ‘Bámbola’ (93).
Refinados banquetes não faltam ao tema, demonstrando o caráter e o estilo de uma época e de uma classe social. Em ‘A Idade da Inocência’ (93), Martin Scorsese deu cuidadosa ênfase aos detalhes gastronômicos, que desfilam ao longo do filme em sete refeições. Para ser fiel às preferências da aristocracia nova-iorquina foram consultados 4 mil livros de cozinha americana da época. Não por acaso a sala de jantar era o lugar de brilho social, na segunda metade do século 19.
Quem também passeia entre comidas e vinhos é o mordomo Anthony Hopkins em ‘Vestígios do Dia’ (93). Assustado com o acúmulo de detalhes para servir, selecionar a prataria, arrumar louça e copos nos lugares determinados pela etiqueta, o ator exigiu – e obteve – a assessoria de um profissional para os treinamentos. Ainda assim, peritos na matéria juram que Hopkins falhou em duas cenas em que deveria estar de luvas brancas.
Em ‘O Leopardo’ (63), obra-prima de Visconti, a descrição magistral da aristocracia tão familiar ao diretor, ele mesmo Luchino Visconti e Ebra, conde de Modrone. O momento máximo: a sequência do jantar final numa longa mesa onde são servidas lagostas cozidas, robalos ao molho, tortas de fígado e intermináveis manjares. Tudo preparado por 20 cozinheiros de diversos restaurantes italianos.
Entre os pratos típicos mais populares servidos pelo cinema com certeza está a pizza, na maioria das vezes servida ao molho ‘cosa nostra’. Presente em centenas de filmes, é no clássico neo-realista ‘Ladrão de Bicicletas’ (48) que ela ganha importante figuração simbólica. Diante do alimento fumegante que se oferece, desaparecem a tristeza e o cansaço depois do roubo da bicicleta. Já no mais recente ‘Faça a Coisa Certa’ (89), a pizzaria comandada por Danny Ayello é um microcosmo para Spike Lee discutir racismo e violência na América contemporânea.
E provavelmente não seja o prato típico do Alaska, mas a bota fervida que o esfomeado Carlitos e o amigo comem em ‘Em Busca do Ouro’ (1925) é uma das melhores sequências gastronômicas de todo o século 20. Com estilo de ‘grand gourmet’, Chaplin enrola os cordões como se fossem espaguetis e os devora com inefável prazer. Uma cena inesquecível, como memorável é também a exótica iguaria servida a Harrison Ford em ‘Indiana Jones e o Templo da Perdição’. Especialidade da Guiné – embora a ação do filme transcorra na Índia –, o cérebro quente e palpitante de macaco, comido no próprio crânio do bicho ainda vivo, é transgressão única que nem o herói Jones suportou. Esta prática cinematográfica, ao invés da extinção, foi antropofagicamente reciclada e restaurada, agora sob os cuidados do maitre ‘Hanniball’ (2001).