Na oferta de horrores que o exibidor colocou à disposição do público neste fim de semana sob a rubrica marqueteira do Halloween, felizmente abriu-se espaço para a diversidade. Bem ao lado de ‘Jogos Mortais IV’, está hospedado no multiplex da cidade um estranho caso de alteração do estado mórbido do gênero.
Mesmo sem conseguir manter durante parte da narrativa o excelente pique da primeira metade, a estréia nacional ‘1408’ eleva com certa bravura a qualidade dos títulos do segmento que abastecem o mercado interno, e prova que o espectador pode experimentar o medo sem receber indesejadas transfusões de sangue e se submeter a atrocidades inomináveis na sala escura.
A secreta atração e a força sedutora do gênero fantástico – do qual faz parte o cinema de horror como principal e mais popular vertente – estão em sua capacidade de revelar a parte visível do invisível e a invisível do visível das coisas, de cortejar os medos e desejos mais secretos do inconsciente individual e coletivo, de significar mediante metáforas e alegorias aquilo que não se quer mostrar explicitamente.
A base do cinema clássico de horror – e que se encontra em apenas uma reduzida parte dos filmes mais recentes – era a exploração do medo do espectador diante do desconhecido, do inexplicável, do diferente. O desconhecido era o mundo dos vampiros e dos mortos, as intenções das pessoas de hábitos esquisitos e os lugares tenebrosos.
O inexplicável era o sobrenatural, os espectros, as aparições e os seres com estranhos poderes. E o diferente eram os monstros e as criaturas disformes, mutantes ou híbridas. Uma saudável orgia de climas e atmosferas, muito mais do que qualquer coisa com a qual se convive agora na poltrona do cinema.
Disto sobrou muito pouco, e quem surgiu escalado para as mudanças foi uma geração de realizadores obviamente não cinéfilos, mas com largo currículo de instantâneas firulas publicitárias. Em busca apenas de resposta imediata de box office, cem por cento orientados para o lucro e zero por cento para o fazer artístico, estes diretores pragmaticamente se armaram de uma teoria reducionista, primária, primitiva mesmo: a de que os jovens de hoje queriam somente o terror que fosse realmente horroroso, aquela gama de emoções inseguras, intranqüilas, literalmente viscerais, chocantes, sem sugestões ou sem a diversão de antes. As bilheterias de fato engordaram, mas com perda qualitativa proporcional à rentabilidade dos produtos.
Este público de albergues e jogos mortais teve a passagem para o cérebro bloqueada pela retina congestionada e encharcada de hemolitros, e em raríssimos momentos foram oferecidas alternativas de mistérios, enigmas e sombras. Por isso, num certo sentido, embora sem o rigor e a coerência necessários, ‘1408’ representa uma espécie de resgate de velhos, bons e esquecidos hábitos de assustar genuinamente as platéias, isto é, com as mãos limpas, sem apelar para a facilidade de recursos que a tecnologia disponibilizou e que reiteradamente desfiguram o gênero, quando mal utilizados.
O conto de curtíssima duração de Stephen King em que o argumento se baseou está mantido sem dúvida, e o resultado filmado representa ótima resolução de problemas em geral surgidos nestes casos – criação de novas cenas, inclusão de personagens e situações estendidas sem arbitrariedades, respeitosas para com as intenções da fonte literária. O roteiro escrito a seis mãos complementa corretamente o fio da história, enriquecendo os tipos humanos e aprofundando as raízes dos fatos que correm na tela.
O protagonista é Mike Enslin (John Cusack, em sólida caracterização), escritor de guias turísticos com foco na paranormalidade. Ele visita hotéis famosos e ‘enfeitiçados’, e reporta suas experiências, agora normalmente livres de fantasmas ou espectros. Enslin é informado da existência do sinistro quarto 1408 no elegante Hotel Dolphin, em Nova York, e contrariando todos os pedidos (e súplicas) do administrador Olin (Samuel L. Jackson), o escritor passa uma noite no quarto fatídico, onde já ocorreu meia dúzia de mortes. De novo na imaginação de King a presença de outro hotel com ‘alma’, como em ‘O Iluminado’.
Nos 60 minutos iniciais, ‘1408’ é portador de aterradora excelência, graças à conjugação de três fatores: o já citado roteiro muito bem ajustado e sem fissuras, à convincente presença de Cusak, este ator via de regra mal aproveitado, e à direção muito precisa e hábil do sueco Mikael Hafstrom, alguém que conhece o mecanismo do suspense à moda antiga – e ainda à prova de novidades.
A linha mestra não é lá muito original – investigador cético afinal encontra manifestações do além –, mas a criatividade dos fatores conjugados estabelece um interessante jogo emocional. Jogo que funciona como desencadeador de misteriosos eventos, dando ao filme um pano de fundo psicológico que se pode interpretar de várias maneiras.
Enquanto trilha um argumento fundamentado nos ‘demônios internos’ do subconsciente e em fatos dolorosos do passado, ‘1408’ funciona admiravelmente. Mas da metade para o final há o rompimento com o intenso drama pessoal do protagonista, e o filme volta e meia resvala para o incrível e o ilógico. Não que se espere ‘realismo’ em exemplar do gênero fantástico, mas isto não desculpa o abandono da lógica interna da história e a invasão, cena após cena, de inexplicáveis, irrelevantes e dispersivos fatos novos. A narrativa torna-se menos densa, perde de vista seu enfoque mais sóbrio e metódico e abre espaço para sustos arbitrários e efeitos que ‘vestem’ as situações paranormais.
Mas ainda assim ‘1408’ é filme muito mais honesto como pressuposto, muito mais profundo como investigação do insólito e muito mais atemorizante como experiência sobre o medo do que o insuportável ‘Jogos Mortais IV’.