Agora já não há nenhuma dúvida quanto ao lugar de honra que Clint Eastwood fez por merecer no panteão do cinema mundial. Até uma década ou pouco mais, a simples menção de seu nome de imediato presumia a imagem de um ícone: o cavaleiro errante e solitário das áridas paisagens do Velho Oeste, ou o tira renegado empunhando sua própria porção de justiça nas ruas sem lei da metrópole contemporânea.
Embora tenha dirigido filmes desde os primeiros anos 1970 - alguns deles muito bons (''Josey Wales, o Fora da Lei'', ''Bird'', para cita apenas dois) -, ele sempre foi notado antes como ator, e só depois mencionado como diretor. Mas agora isto mudou.
Ao longo dos anos, Eastwood tornou-se um realizador consumado, o artista de intransigente integridade como poucos numa profissão ostensivamente mais interessada em imagens geradas por computador do que nas profundezas da experiência humana. Nesse sentido o Oscar 2005 deve ser saudado como exceção humanista, a gota d’água reflexiva no oceano escapista de Hollywood.
Em lançamento nacional, ''Menina de Ouro'' é o vigésimo quinto trabalho de Eastwood como diretor e um dos cinco candidatos a melhor filme na cerimônia de entrega do Oscar, dia 27 - concorre ainda a outras seis estatuetas.
Na aparência é um filme de boxe, mas por trás de ''Million Dollar Baby'' está embutida aquela que é talvez a mais bela e lúcida proposta do legendário e setuagenário Clint, obra-prima que ganha ainda maior relevo porque elaborada imediatamente após o extraordinário ''Sobre Meninos e Lobos''.
O diretor trocou a paisagem, mas não a atitude. ''Menina de Ouro'', o filme, e Clint Eastwood, o ator e o diretor, afrontam sem qualquer intenção ou preocupação defensiva temas tão difíceis, profundos e esquivos como as relações entre pais e filhos, entre parceiros de derrotas diversas, entre os atos de viver e de sobreviver, entre a dignidade possível para um e para outro.
Baseado em roteiro de Paul Haggis adaptado de novela de F.X. Poole (pseudônimo do treinador de boxe Jerry Boyd), é a história de Frankie Dunn (Eastwood), veterano ''manager'' amargurado e consumido pela ausência da filha que um dia deixou de ver e com a qual tenta inutilmente se comunicar por cartas nunca respondidas.
Frankie dirige um velho ginásio. Ao seu lado, outro derrotado, o pugilista Eddie ''Scrap-Iron'' Dupree (Morgan Freeman), há muito aposentado por força de um golpe que o deixou cego.
Amigos, não compartilham a mesma opinião quando a garçonete Maggie Fitzgerald (Hilary Swank), saída de família miserável, aparece para treinar com a idéia fixa de se tornar campeã.
A principio contrário, Frankie acaba treinando a moça. No fundo da razão, ele sabe que ela tem potencial para chegar ao título. No fundo do coração, ele sabe que ela pode vir a ser a filha que ele tanto busca. E ela, o pai que há muito perdeu.
Alguns dos temas deste drama humano, deste estudo psicológico, desta catarse sentimental encontram a metáfora do boxe: a luta pela redenção, pela esperança, pelo sonho, pelo compromisso com a superação e pela amizade.
O olhar de Clint em direção a tudo isso é sempre honesto e comovente, ainda que sombrio, mesclando lirismo e reflexão. Há sangue, sim, em ''Menina de Ouro'', mas não muito.
No entanto, sua presença colorida contrasta e até choca neste filme que parece tão dramaticamente, tão espiritualmente em preto e branco. Há o negro profundo da narração em off do personagem de Morgan Freeman, há o branco da presença inocente e pulsante da pugilista Maggie, há o contorno claro-escuro de Frankie, que leva suas dúvidas espirituais à missa diária, como se um dia fosse encontrar o perdão.
Um diretor em estado de graça criativa, três atores transfigurados em seres humanos de carne, osso e veracidade. Hilary Swank tem tudo para ganhar seu segundo Oscar depois de ''Meninos Não Choram''.
Freeman deveria levar o seu de uma vez por todas, depois de tantas negativas da Academia. E o que dizer de Clint? Talvez seja a sua vez também como ator.
Ele está inteiro e inesquecível na performance do ''macho'' fragilizado que desmorona diante do padre, alguém capaz de ler Yeats em gaélico e dedicar os versos a quem tanto se apegou.
O que o crítico americano Vincent Canby um dia disse de Akira Kurosawa cai como uma luva em Clint: a obra dele agora alcançou um patamar fora do tempo, acima dos modismos.