O 59º Festival de Cannes, como diz fórmula consagrada por aqui, já está entrando na reta final. Agora, todos recorrem às bolas de cristal para trabalhar prognósticos. Todos, menos o imenso contingente do Mercado do Filme (estimativa em torno de 10 mil, entre compradores e vendedores), que não especula para as mãos de quem vai a Palma de Ouro, mas quantos milhões de dólares os negócios vão colocar nas mãos deles. Ouve-se também de coleguinhas da imprensa frases como ''Não vim a Cannes para ver isto !'', este ''isto'' em chave muito genérica. E por aí vai neste quase final de festa, com a baía de Cannes congestionada por uma frota de iates de fazer corar qualquer ganhador de megasena. Acumulada...
E chegou finalmente a quarta-feira, o dia de ''Marie Antoinette'', a superprodução que Sofia Coppola realizou na França. Queridinha da crítica européia depois de dois filmes muito interessantes e nada além disso , que deixaram claro que ela leva jeito, a filha de Francis ''Poderoso Chefão'' Ford Coppola se tomou de amores pela muito jovem, frustrada e melancólica rainha da França, mulher de Luis XVI, e mudou-se em 2005 de armas e bagagens para Versalhes, onde realizou boa parte do trabalho. O resultado é esta cinebiografia adaptada da visão crítica da escritora inglesa Antonia Fraser. E não por coincidência, uma visão muito próxima de suas perplexas personagens femininas anteriores em ''As Virgens Suicidas'' e ''Encontros e Desencontros''.
Aos 16 anos, a ainda menina Marie Antoinette deixa a corte da Áustria para casar-se na França com o ''delfim'', o também muito jovem Luis XVI. Ela descobre um mundo hostil e um marido indiferente, e se consola num universo de frivolidades que inclui festas, jogos e gastos, muitos gastos. Mas a Revolução se aproxima e...bem, os historiadores puristas não são admitidos neste baile.
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O filme de Sofia Coppola não exalta a história da rainha de França. A diretora sublima o anacronismo para narrar brevemente o destino contrariado de uma estrangeira na corte francesa. E é cima desta proposta que se apóia todo o filme. Ele não funciona como crônica de um tédio previsível, e acaba se desgastando ao longo de duas horas como um romance em formato de fotonovela, hesitante sempre entre o formalismo mais respeitoso e algumas audácias mais fáceis.
Ao contrário de Baz Luhrman em ''Romeu + Julieta'' ou mesmo em ''Moulin Rouge'', Sophia tenta escapar do compromisso mais formal com a reconstituição de época ilustrando o filme com uma trilha musical à base de pop-rock, um sem número de rodadas de sobremesas muito contemporâneas e um desfile de sapatos de luxo onde introduz, maliciosamente, um par de tênis. Desta maneira, a pequena história tenta reescrever a grande, mas acaba apenas por desenhar um simples retrato de mulher. Na coletiva, Sofia disse mesmo que não pensou em fazer um filme com implicações políticas. Pena, porque teria sido até fascinante o confronto entre personagem e bastidores do complicado xadrez político do período.
Kirsten Dunst, namorada do Homem-Aranha, é o melhor que o filme oferece, combinando em sua Marie-Antoinette o desamparo, a fragilidade, o coquetismo, a graça e a vulnerabilidade da transição penosa entre adolescente e mulher.
Da França e da Bélgica, dois concorrentes a rachar opiniões. Com o francês Bruno Dumont já é praxe. Querido entre os que o consideram um visionário porta-voz da classe trabalhadora não articulada seus atores são sempre amadores, toscos e rudes e odiado ou simplesmente omitido entre aqueles que consideram seu realismo-quase-naturalismo como inteligente jogada de maneirismo cinematográfico.
No caso de ''Flandres'' (região natal do diretor) Dumont parece mais convencional em relação a seus trabalhos precedentes, ''A Humanidade'' e ''29 Palms'', e portanto mais palatável diante de platéias não exclusivas de circuitos de arte e ensaio. Mas com a emoção causada pelas imagens de ''Babel'' ainda frescas na retina, fica difícil acreditar nos personagens ou no estilo quase absurdamente ascético de Dumont.
Com exatos 90 minutos, o filme se divide em três tempos iguais. No primeiro, o jovem e chucro agricultor Andre divide o tempo entre trabalhar a terra e sair pela região com a também jovem vizinha Barbe. Durante os passeios, os dois fazem sexo perfunctório, sem qualquer alegria ou prazer. Barbe também sai com outros. Chamado a combater numa guerra que ele não sabe qual (e nem o espectador), segue com outros amigos. O front é em algum ponto do Oriente Médio ou África, a critério.
Em meio a combates de guerrilha que lembram o nascido para ''Nascido Para Matar'' de Kubrick, cinco soldados violentam uma mulher. São em seguida abatidos um a um, menos André. Que volta para Flandres. E num terceiro tempo, ele descobre que Barbe está grávida de um soldado que morreu. Ela decide abortar e tem uma crise nervosa. Eles se reencontram, dizem que se amam. Já não são mais os mesmos.
Recentemente promovido a cult, o belga Lucas Belvaux está com uma incensada trilogia em exibição no Brasil. Aqui na Europa também tem seu séquito, mas o candidato à Palma de Ouro que ele assina, ''La Raison du Plus Faible'' (''A Razão do Mais Fraco'') não justifica o alvoroço em cima do diretor, que aliás não é propriamente um autor. Policial com algumas (poucas) pretensões sociais e existenciais, o filme é de certa forma elucidativo acerca dos critérios da seleção da mostra competitiva este ano, que abrigou exemplares que, com certeza, não estariam na ambiciosa comemoração já anunciada para 2007, nos 60 anos do festival.
História de alguns deserdados pela sorte, sem perspectivas, humilhados: dois desempregados (um deles pai de família), outro paraplégico, um quarto ex-presidiário. Um plano, um assalto arrojado, uma aventura tão amadora quanto romântica, o desastre, o fim da ilusão. Nos anos 1970, o cinema francês fazia muito melhor, com muito mais classe e estilo. Os diretores nenhum autor, mas quem precisava de autores com Godard, Truffaut e Resnais por perto ? chamavam-se então Jean Pierre Melville e Henri Verneiul, entre outros. E os atores atendiam pelos nomes de Alain Delon, Jean Paul Belmondo, Jean Gabin, Lino Ventura, entre outros. Aqui mesmo, tão perto, e não aprenderam a lição.
* O jornalista está em Cannes a convite da organização do festival.
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