O festejado estúdio de animação Pixar deve ter produzido ''Ratatouille'' em regime de muito stress. Não somente porque o filme era essencial no processo de recuperação de credibilidade depois do meio fracasso que foi ''Carros'', mas também para enfrentar a concorrência sem criatividade, mas agressiva, que saturou todos os mercados do planeta com filmes animados em busca do muito vasto e muito rentável publico infantil.
Felizmente ''Ratatouille'' esteve desde sempre aos cuidados do diretor Brad Bird, um visionário egresso de merecidos sucessos - várias temporadas de ''Os Simpsons'' e o longa ''Os Incríveis''.
No mesmo nível destes exemplos citados, o filme que chega ao território brasileiro é uma obra tão cheia de graça, divertida e criativa como as melhores com o selo da Pixar, aqui especialmente incluídos ''Toy Story'', ''Vida de Inseto'', ''Procurando Nemo'' e ''Monstros & Cia''. E muito, mas muito superior às pálidas e ruidosas imitações de outras fontes que, como um chef de cuisine de segunda linha, substituem qualidade por quantidade.
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''Ratatouille'' centraliza seu foco nas aventuras de Rémy, um sensível rato que vive com seu enorme clã na periferia de Paris. Obrigado pelas circunstâncias a se alimentar de lixo, no entanto ele é extremamente interessado na melhor cozinha, graças à influência de um best seller (e programa de televisão) escrito pelo falecido guru da culinária, Chef Gusteau, imortalizado por um conselho simples mas de influência decisiva: ''Qualquer um pode cozinhar''.
E como no universo da animação - e na mente prodigiosa em originalidade do diretor Bird - tudo é possível, o destino e as convicções conduzirão Remy ao mesmíssimo restaurante Gusteau, mergulhado em crise depois da morte do dono.
Na cozinha do lugar, nosso herói formará uma improvável (mas afinal inquestionável) dupla com o jovem Linguini, aspirante a chefe mas no momento apenas um desses típicos perdedores, aquele tipo condenado a lavar pratos e tirar o lixo como últimas opções de trabalho.
Mas o talento incomum e a persistência do ratinho (escondido no gorro de cozinheiro) para armar alquimias gastronômicas conduzirão Linguini ao estrelato, alguém capaz de ressuscitar o restaurante em que pesem as tramóias de Skinner, o perverso, invejoso e ambicioso chefe da cozinha.
Bem, este é o argumento muito bem tramado de ''Ratatouille'' - aliás, por definição, um muito apreciado cozido vegetariano francês da região da Provence. E quanto à forma como este fervilhante banquete de idéias chega à mesa do espectador? Bem, estamos diante de imagens assombrosas. Nestas alturas nos habituamos ao extraordinário foto-realismo de filmes como ''Shrek Terceiro'' ou ''Os Sem-Floresta''.
Mas a façanha da Pixar vai mais além de simplesmente criar objetos e lugares indistinguíveis da realidade. A animação dos personagens é perfeita, e leva a pensar que, no conjunto de filmes com animais antropomórficos, Pixar é um dos raros estúdios que se atreve a conservar o comportamento real dos referidos animais, e não apenas ''vestir'' um personagem genérico com um disfarce de animal.
Assim, o protagonista do filme, sendo um rato, naturalmente se comporta como tal, e ainda leva o público ao envolvimento afetivo com a espécie, mostrando o lado familiar e amável destes bichos via de regra repudiados pelos homens. Alguém poderia, quem sabe, enxergar algum recado de integração racial neste congraçamento entre roedores e humanos, e não estaria aí nenhuma extravagância de interpretação.
''Ratatouille''pode ser apreciado em pelo menos dois níveis de leitura, um mais epidérmico em consideração aos menores na platéia, e outro verticalizado para a ótica dos adultos. Há no filme inteligência fina, humor que oscila do inocente ao negro, capacidade de entreter e seduzir e até um apelo comedido à veia romântica e à comédia física no melhor estilo slapstick.
É também um hino às ruas, à gastronomia e àquela Paris que habita o imaginário de muitos como espaço essencial de finesse. E afinal é ainda uma sátira à mistificação em que se transformou a arte de cozinhar, seus exageros, sua pretensão desmedida, seu artificialismo e sua vulgarização.