Não é sempre que fato tão auspicioso se repete em salas de cinema de Londrina. Portanto, agarrar esta chance quase única é prova de bom senso e bom gosto.
Pelo preço de qualquer rotineiro filme americano - rotineiro aqui com ampla acepção pejorativa -, o espectador leva logo de uma vez dois grandes filmes asiáticos, comprovados banquetes sensoriais estampados nas telas pela mesma grife de alta cinematografia. É que os cines Catuaí estão em mês de baixa de preços, oferecendo o ingresso pelo valor único da meia-entrada do dia.
Não se pode falar de ‘O Clã das Adagas Voadoras’ sem mencionar ‘Herói’, a produção mais cara já realizada na China, e também sem abordar a inevitável comparação entre ambos. Até porque quem assina as produções é Zhang Yimou, provavelmente o cineasta chinês mais conhecido na atualidade - embora o mais universal seja Ang Lee.
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Realizado em 2002, mas somente a partir do ano passado com ampla circulação internacional, ‘Herói’ sinalizou, com muitas evidências, a mudança radical na filmografia de Yimou.
O cineasta passou de trabalhos de corte claramente ligado a análise crítica de costumes e ao intimismo, dotados de enorme sensibilidade (‘Sorgo Vermelho’, ‘Lanternas Vermelhas’, ‘Esposas e Concubinas’), a alguma coisa a priori tão oposta como o denominado gênero ‘Wuxia’ de espadachins, cavalaria e artes marciais. Um gênero que se viu relançado em circuito mundial e criativamente regenerado pelo muito conhecido ‘Tigre e Dragão’, do citado Ang Lee, Oscar de melhor filme estrangeiro.
Com ‘Herói’, Zhang Yimou elevou o cinema das artes marciais à categoria de gênero maior. E se mantém nesse patamar com ‘O Clã das Adagas Voadoras’, em que volta a deslumbrar pela beleza das imagens.
Praticamente sem um argumento mais sólido, o filme é muito mais balé épico (guerra no século IX) e trágico (amor marcado pela fatalidade) do que passatempo de aventuras.
Assumidamente convencional, a trama de ‘O Clã...’ se situa na China ancestral, ano 859. De um lado, o governo corrupto, de outro uma irmandade proscrita que se opõe à autoridade despótica. No centro do conflito, um triângulo amoroso à trágica feição shakespeariana com desdobramentos mais e mais surpreendentes, à medida que a ação avança.
‘O Clã das Adagas Voadoras’ quase sempre é um filme de ação, com belíssimas cenas de luta oriental coreografadas como se fossem balés espetaculares. Zhang realiza um trabalho esplêndido em todas elas, resultando especialmente brilhante a que acontece no bosque de bambu, um prodígio de originalidade, composição cromática e acrobacia.
Todo o conjunto resulta preciosamente desenhado por uma paleta de cores que já é legendária no currículo de seu autor, notadamente nos títulos referidos acima. Aqui, predominam o ocre nos campos de outono e o verde-água fantasmagórico do bambuzal. Embriagado por este cromatismo, o diretor vai construindo sua emaranhada intriga amorosa.
De um lado, o policial (Andy Lau) irremediavelmente apaixonado pela mulher (Zhang Ziyi). Esta, muito amada, mas pouco amante, vai concentrar novo interesse em seu inesperado protetor, o também policial (Takeshi Kaneshiro). Este, folgado don juan livre como o vento, será fisgado pela beleza avassaladora de sua nem tão inocente companheira de fuga.
As intercorrências afetivas desembocam num desfecho fatal sob a neve ensangüentada, naquele que afinal é o único deslize ‘por excesso’ cometido por Yimou. Há uma troca evidente da sensibilidade, até então sob controle, pelo sentimentalismo mais exacerbado.
Embora menos perfeito e acabado do que ‘Herói’, este ‘O Clã das Adagas Voadoras’ é manancial inesgotável de prazeres sensoriais. Coreografias, vestuário, locações (chinesas e ucranianas), som, fotografia (de Zhao Xiaoding), montagem e o trio central de atores, o conjunto é de uma beleza arrebatadora.
Tudo é lindo, maravilhoso, envolvente, o apetite estético está saciado com esta overdose formal. Mas à saída do cinema sou mais uma vez acometido por súbita nostalgia, quase um sentimento de perda, aquela mesma sensação depois de ter visto ‘Herói’.
Onde andará aquele Zhang Yimou ‘pequeno’, não comercial, de orçamentos mínimos e certeiras adagas político-sociais? Estaria perdidamente cooptado pelo fascínio da grandiloqüência, pelo foco inebriante dos holofotes da fama globalizada? Saio em busca de notícias. Encontro e vou dormir tranqüilo: ele já está filmando a história de um japonês que viaja à China com o filho para ensinar ópera. Só isto, nenhuma outra informação. Mas é o bastante. Zhang Yimou parece estar voltando para casa.