Nem é mais preciso ler manchetes ou ver telejornais para saber que aumenta todos os dias o número de mortos na Palestina. Todos os dias novos capítulos sangrentos são acrescentados a esta história de ódio e guerra que parece coisa saída da barbárie do início dos tempos, mas que tem data bem mais próxima, ali pelo final dos anos 1940.
Apesar da enorme quantidade de material editorial ou audiovisual colocada objetivamente todos os dias diante dos olhos do mundo, este mundo tão informado parece mais e mais distante daquela tragédia, sem compreender de fato o que sucede, sem avaliar as cifras, sem saber os rostos por trás da luta.
Diante desta desesperante situação, um palestino com passaporte holandês mas que passou boa parte da vida em Israel decidiu contar uma história que sabia tão incendiária quanto polêmica. Em ''Paradise Now'', que no Brasil não recebeu tradução, mantendo o título original, Hany Abu-Assad coloca no contexto do thriller político uma questão moral básica: é válida a condenação da violência terrorista sem a consideração do estado de coisas que a provoca?
O assunto, delicadíssimo, não somente provocou forte controvérsia entre espectadores israelenses mas também entre os próprios palestinos sem mencionar a reação de judeus-americanos, que pressionaram ao máximo a Academia de Hollywood para que o filme não fosse aceito em concurso para o Oscar de melhor estrangeiro, e se fosse, não recebesse o selo de origem como ''palestino''.
Meia vitória: o filme concorreu mas a não levou, ficando a estatueta para o muito inferior sul-africano ''Tsotsi''. Mas acima de extremismos persiste uma transparente evidencia: ''Paradise Now'' é filme de enorme valor. Polêmico sim, mas com uma forte pegada humanista.
Uma dupla de amigos palestinos, Said (Kais Naschel) e Khamel (Ali Suhman), mecânicos de profissão, aceitam a missião do Jihad Islâmico de se imolar como bombas humanas em Tel-Aviv. Para realizar o atentado eles têm 48 horas. A primeira motivação de ambos é protestar contra a ocupação de sua cidade, Nablus, pelos israelenses. A segunda e definitiva é a salvação eterna mediante ato de heroísmo.
Um dos propósitos mais arriscados do filme é romper com a representação tradicional do terrorista como ser essencialmente perverso, movido por motivos inconfessáveis, com absoluto desprezo pela vida humana, tão delirante como o fanatismo que o provoca. E propor, em contrapartida, o retrato do terrorista como ''combatente da liberdade'', ou como ''mártir''. Daí a fazer a apologia e a glorificar o terrorista só havia um passo. Um passo que ''Paradise Now'' terminantemente se nega a dar.
Para não cair nesta distorção, Abu-Assad evita exatamente o maniqueísmo muito em voga, a caricatura do ''eixo do mal'' (a teoria fundamentalista Bush-Blair, ''eixo da democracia''...) que gera demônios incontroláveis e consequentemente atos de violência irracional.
O diretor-roteirista coloca para apreciação e discussão uma variedade de pontos de vista: as vacilações morais dos personagens-bomba quanto a realizar a missão encomendada; a perspectiva também moral de Suha (Lubna Azabal, a garota de ''Exílios''), nova de Said, que persegue solução pacífica para o conflito, evitando que os ''combatentes pela liberdade'' se tornem iguais ao invasor israelense que condenam.
A ênfase neste personagem feminino e na crise existencial do vacilante Said, potencial bomba humana, marcam com clareza a posição do diretor Abu-Assad. Para ele, tão injustificável é o ato terrorista quanto o terrorismo de Estado que prolonga a ocupação dos territórios palestinos.
Esta posição explicitamente militante, no entanto, não adquire no filme tom panfletário ou solene. Ao contrário. Há detalhes de humor, como o detalhamento dos preparativos do atentado, as cenas que mostram a gravação em vídeo-pirata das mensagens do ''mártir guerreiro''. Ou aquelas que exibem a execução de palestinos colaboracionistas.
Não é pouca coisa que um cineasta palestino se aventure a expressar o politicamente incorreto e a sacudir com vigor os critérios fundamentalistas em ambos os lados. Estamos diante de um filme com certeza longe da grandiloquência, que cuida tanto da história quanto da estética e que não tenta buscar justificativas para os fatos, mas as causa destes fatos.
Com certeza o filme conteria muito mais suspense embora já seja eletrizante e seria por completo um thriller político se não se debruçasse sobre as considerações morais. Mas Abu-Assad felizmente preferiu assim, e já se perfila como um dos diretores mais interessantes do atual cinema palestino. Vale dizer, bem na contramão das pretensões daquele outro cinema que contempla somente as maiorias.