Nenhum piquete de manifestantes católicos à saída da enorme sala Debussy, no Palais des Festivals, após a première mundial do filme para a imprensa, terça à noite em Cannes. Nenhum fanático da sociedade Opus Dei em atitude de contestação, nenhuma procissão de desagravo, somente um mar de repórteres e câmeras de TV, colhendo opiniões dos críticos.
Assim, o Vaticano pode dormir tranquilo porque a versão de ''O Código Da Vinci'' que chega às telas de 60 países (Brasil inclusive) não vai abalar as Sagradas Escrituras. Ou comprometer os fundamentos da fé ou a imagem da instituição. Não mais, com toda a certeza, do que as muitas acusações de pedofilia clerical tornadas públicas, especialmente entre o clero norte-americano.
Quando se falava muito sobre o livro, já se falava também sobre o filme. Era inevitável, a adaptação. O próprio Dan Brown obviamente escreveu pensando nisto. Ele assina a produção, que de resto é impecável, e teve acesso (e controle) direto ao roteiro de Akiva Goldsman.
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E este roteiro, satisfazendo a principal curiosidade de milhares de leitores em vigília mundial enquanto as bilheterias não são abertas, é bastante fiel à letra de Brown. Quer dizer, fiel no limite das respectivas competências: num tempo limitado (duas horas e meia), foi possível condensar o principal da intriga armada pelo autor.
Provavelmente aquele leitor mais chato (aqui não se pode falar em exigente) vai reclamar, faltou isto ou aquilo, poderia ter sido assim ou assado. Mas no geral, o espectador médio não importa se leu ou não o livro não vai desprezar ao que assistiu.
Na platéia de quase 2 mil jornalistas, apesar de algumas poucas deserções durante a projeção, a receptividade até que foi bem camarada, e ao final, se ninguém aplaudiu, também não houve vaias.
Mas muitos riram de alguns diálogos involuntariamente engraçados, justamente naqueles momentos em que o filme parece solenizar em excesso a ficção criada por Brown. O filme tem uma boa arrancada noturna no Louvre, mas em breve acaba perdendo este genuíno arroubo inicial por conta do rocambolesco da trama.
Há momentos de Indiana Jones, outros de Georges Simenon, alguma ressonância de Agatha Christie. Mistério e ação se revezam, temperados com razoável dose de suspense. Há violência, mas bem balizada.
No elenco, só Tom Hanks não convence como o professor Robert Langdon, parecendo pouco à vontade em território que não é dele. Há dois ótimos vilões, Paul Bettany como o fanático monge assassino a serviço da Opus Dei, e Ian McKellen, obcecado com a idéia de decifrar o código e escancarar ao mundo as provas que mudariam a trajetória do cristianismo.
A trama, sabem todos a esta altura, afirma que o Santo Graal é na verdade não uma taça, aquela da Santa Ceia, mas Maria Madalena, um dos apóstolos e posteriormente mulher de Jesus Cristo e geradora de uma descendência que chegou até nossos dias.
Há quem queira provar e mostrar ao mundo esta versão dos fatos, e há aqueles, como a Opus Dei, que querem guardar o segredo para sempre, mesmo à custa de mentiras, traições e assassinatos. É sobre esta mistura de história, teologia, esoterismo e thriller policial que se apóia ''O Código Da Vinci''.
O tempero destes ingredientes seria o ultraje, mas a esfinge do código acabou decifrada em Cannes sem traumas ou embates, e qualquer controvérsia tende a desaparecer poucos dias após a estréia. Ou como resumiu Jean Michel Di Falco, assessor de imprensa da Conferência dos Bispos da França: ''É apenas um filme. Há coisas muito mais importantes acontecendo no mundo''.
Na manhã de quarta-feira, há dois dias da estréia mundia, estavam todos na coletiva, deslocada do espaço habitual para a sala Buñuel, bem maior para conter o natural interesse com a repercussão daquele que todos prenunciavam como o escândalo cinematográfico do século - pretensão até cabível, para um século ainda no berço.
O diretor Ron Howard, os atores Tom Hanks, Ian McKellen, Jean Reno, Alfred Molina e Audrey Tatou. Todas as perguntas foram praticamente incitações à polêmica anunciada, mas Howard e Hanks não abriram a guarda.
Afinal, os batedores do marketing já tinham feito seu trabalho. ''Não é teologia'', insistiu Howard, ''mas ficção''. Tom Hanks não deixou por menos e fez coro: ''Não estamos falando de um documentário, mas sim de ficção''.
Grandes nomes nas baladas, muito dinheiro envolvido, enorme repercussão midiática: satisfeito com o início da festa, Cannes já superou o episódio ''Código Da Vinci'' e nos próximos 11 dias inverte a proposta desta abertura: da arte de fazer cinema ao cinema feito como arte.