O título é tão quilométrico quanto fiel ao original e, portanto, essencial: ''Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças''. Um filme que deve e merece ser visto porque é cinema de boa qualidade, original, instigante. E porque fala de amor sem cometer nenhuma das tolices nas quais o cinema americano tem sido recentemente mestre consumado.
No princípio desta história deliciosamente surpreendente e surrealista, encontramos Joel (Jim Carrey) saindo da cama, introspectivo e angustiado. Logo estará saindo de um trem e chegando a uma praia onde inicia uma relação afetiva com uma garota chamada Clementine (Kate Winslet).
Numa súbita mudança de rumos, cuja lógica logo vai se revelar, o espectador chega diretamente ao fim deste relação: Joel agora está no interior de um carro, chorando depois de uma ríspida despedida.
Logo adiante, quando Joel vai visitar Clementine no trabalho a fim de propor uma volta, ela não mais o reconhece. Pior: já está com outro.
Conduzindo o metafórico a um território fantástico, Joel compreende que Clementine o apagou da memória mediante um processo tecnológico que permite selecionar recordações desagradáveis e simplesmente eliminá-las.
Consumido por aquela milenar dor de amor, Joel então decide submeter-se ao mesmo tratamento desenvolvido por uma corporação não por acaso chamada Lacuna.
O artifício serve como pretexto para a descontrução de uma história de amor e para investigar tudo (ou quase tudo) que interfere em nosso procedimento amoroso, desde as próprias experiências afetivas até as emoções mais soterradas em nosso inconsciente.
''Brilho Eterno...'' passa então a descrever, agora em Joel, o mesmo processo pelo qual Clementine o eliminou da memória, começando pelo últimos dias difíceis até reencontrar o início romântico.
Em ordem cronológica inversa, a vida do casal vai desfilando até o ponto em que Joel descobrirá coisas sobre ela que não quer perder nunca. Mas o processo já foi deflagrado, e não há nada que Joel possa fazer. Ou pode?
O filme é uma deliciosa complicação, um quebra-cabeças em que se mergulha já com a suspeita de que ao final a gratificação virá com certeza.
O roteirista Charles Kaufman, perito neste tipo de jogos mentais (''Quero Ser John Malkovich'', ''Adaptação''), encontrou no diretor francês Michel Gondry mais que um parceiro, um cúmplice. A dupla se equilibra com destreza entre o cerebral e o sensível, entre o exageradamente rebuscado e aquilo mais reconhecível, entre o nonsense e o melancólico.
Realidade e delírio mental vão se alternando; situações se repetem, às vezes parcialmente mudadas. O vertiginoso ir e vir no tempo pode gerar no publico alguma turbulência ou a sensação de extravio. Mas vale a pena ir adiante, seja pela jornada que aborda temas e subtemas sempre presentes em quem tem, teve ou ainda terá vida afetiva.
Para levar esta narrativa aos níveis satisfatórios que obtém, Gondry também dirigiu um elenco impecável, a começar por Jim Carrey e Kate Winslet, o primeiro se diplomando com láurea em complexa manobra introspectiva, logo ele que é pura explosão física.
E ela, entre vital e sensível, entre instável e desprendida. O entorno com Elijah Wood, Mark Ruffalo e Kirsten Dunst é também essencial para que o amor supere a lavagem cerebral. Mesmo que o atrevimento de vivê-lo seja desafiar o risco do desgaste, da rotina e da dor.