Racionais que somos, sem nenhuma dúvida, levamos a marca de uma cultura que contrapõe razão e sentimento. Herdamos do Iluminismo a crença que nos atrelou a um só tipo de realidade. A ilusão, por isso mesmo, é tão fascinante a ponto de desejarmos, com absoluto fervor, romper este condicionamento e colocar à prova os limites da razão em busca de outras dimensões, outras possibilidades.
É bem provável que seja esta a causa de nosso fascínio pelo universo das lendas, das fadas, da magia, do oculto. O fascínio, afinal, pelo cinema e sua matéria-prima artística por excelência, isto é, a prestidigitação.
''O Prestígio'' é o título original da novela de Christopher Priest que também dá nome ao filme aqui rebatizado como ''O Grande Truque'', e que chega aos cinemas do Brasil.
Para efeito de contextualização, é conveniente explicar, segundo cartilha fundamental dos mágicos, que ''Prestígio'' (a reaparição do objeto) é a terceira e última parte de qualquer truque de magia, precedido pela ''Promessa'' (ou a apresentação do objeto) e pela ''Transformação'' (seu desaparecimento ou ocultação).
Ambientado em fins do século 19 e início do 20, ''O Grande Truque'' centra seu foco de interesse na impiedosa competição que, ao longo dos anos, se estabelece entre dois mágicos, o aristocrático Robert Angier (Hugh 'Wolverine' Jackman) e o proletário Alfred Borden (Christian 'Batman' Bale) - não aleatoriamente o diretor Nolan escalou a dupla para interpretar prestidigitadores.
A convivência entre eles começa quando aparecem como ''voluntários'' no meio do público, um no show do outro. E se deteriora quando um incidente durante um número de magia termina em tragédia, separando de vez os mágicos e transformando a vida deles. Uma alternativa de vingança segue a trama em paralelo.
Quem persegue para atrapalhar as magias do outro, arruinar a carreira, roubar e até assassinar é Angier. Mas Borden não ficará passivo, e a regra que passa a vigorar na narrativa é a do duplo, do mutuo, do simétrico.
Tudo passa a ser imitação entre os dois. Entre eles a assistente e amante dupla (Scarlett Johansson, sem dizer a que veio), Cutter, o criador de artifícios cênicos de magia (Michael Caine) e o cientista Tesla (David Bowie, o próprio, com as bochechas infladas). Este mantém certa rivalidade ''elétrica'' com Thomas Edson, o que faz eco com a disputa entre Angier e Borden.
O que mobiliza e torna o filme magnético são duas idéias contrapostas, mas ao mesmo tempo complementares. Enquanto um dos antagonistas quer respeitar as tradições do espetáculo, o outro quer forçá-las. Enquanto um crê na técnica, o outro acredita na inspiração. Um quer somente agradar o público, já o outro quer dar uma vigorosa sacudida. Em decorrência disto, cada um será um e outro alternadamente, num relato em que Borden é destreza, coração e inspiração à toda prova e Angier é o calculista que se vale da técnica.
O diretor Christopher Nolan, de ''Amnésia'' e ''Insônia'', tem um arsenal de trunfos e truques, joga com todas as possibilidades do roteiro e da imagem. Mas principalmente joga com o espectador, numa narrativa que é parte das regras ilusionistas que ele mesmo estabelece.
Assim, quem é herói aqui e agora, é vilão dez minutos mais tarde, e quem parece desprezível num momento passa a provocar empatia logo mais adiante. E de acordo com o olhar que se escolha, ''O Grande Truque'' pode ser um grande filme. Ou apenas uma espertíssima aula de prestidigitação, esta mesma que o cinema vem lidando com resultados variáveis há 111 anos, a serem festejados dia 28 próximo.