Não deixa de ser irônico, quando não engraçado, que uma das vertentes mais poderosas do cinema do futuro se entregue ao passado para colocar na tela seus argumentos. Se ‘300’ convertia em alentado videoclipe sem alma as histórias de guerreiros confrontados com a duvidosa causa da glória via sacrifício impregnado de testosterona, este ‘A Lenda de Beowulf’ que chega ao circuito exibidor nacional se assemelha a velhos filmes de dragões, princesas e heróis em mescla extravagante, mas não inteiramente isenta de atrativo.
‘Beowulf’, arriscado projeto virtual do diretor Robert Zemekis, foi inteiramente realizado mediante animação gerada por computador. A partir da técnica inovadora batizada de ‘Performance Capture’, Zemekis converteu Angelina Jolie e Anthony Hopkins em personagens virtuais e digitalizados. É confessadamente uma técnica que aspira a revolucionar o cinema do futuro, mas que, a julgar pela experiência de ‘O Expresso Polar’ (2004) e por esta agora, ainda está nos cueiros.
Com este recurso, que já demonstra progressos nestes três anos, Zemekis digitalizou também outros atores, como Robin Wright Penn e John Malkovich, que se enfiaram em traje de lycra úmida permeada por sensores digitais. Estas e outras parafernálias, como o recurso da animação em 3D (cópias apenas em poucos multiplex do País, Londrina excluída), estão a serviço da adaptação do poema épico Beowulf, a mais antiga peça da literatura anglo-saxônica. Um texto que data do século 7, e que encontra equivalência mitológico-nacionalista, por exemplo, no El Cid dos espanhóis. A produção partiu de um roteiro de Neil Gaiman e Roger Avery, ganhador do Oscar por ‘Pulp Fiction’, assinado em conjunto com Quentin Tarantino.
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Bem, a constatação. Não existe motivo consistente para que o filme tenha sido realizado por este sistema de animação. Ou será que é mais barato e rápido do que realizar de maneira tradicional? O argumento-aventura gira em torno do personagem-título, Beowulf, poderoso guerreiro que combate o demônio Grendel em defesa do antigo reino da Dinamarca. Uma façanha que se converterá na lenda que inspirou o poema ancestral escrito em inglês arcaico, língua que aqui e ali passeia pelos diálogos.
Como Peter Jackson provou em ‘O Senhor dos Anéis’ – a propósito, J.R.R.Tolkien nunca escondeu que ‘Beowulf’ foi a maior influência para a sua escritura monumental –, personagens digitais podem se misturar com atores sem nenhum inconveniente. Mas quando o espectador tenta penetrar emocionalmente nas desventuras do heróico viking, que protege uma aldeia nórdica das investidas do monstro Grendel para logo tornar-se rei e fazer estranho pacto com ‘a diaba’, não há como evitar a sensação de se estar no interior de uma narrativa de ação violenta balanceada com um novo episódio de Shrek.
Algumas situações dramáticas até chegam a aparentar intensidade, mas resultam malogradas quando se depara com personagens (des) animados, de olhar oco, sem vida, caídos no vazio. Se eles são ‘quase’ como atores reais, por que não utilizar os próprios atores e pronto? Tem sentido passar anos e anos tentando imitar algo que pode ser capturado por uma câmera de cinema ?
Não se trata aqui de negar os efeitos e prazeres da animação. Ao contrário: apenas questionar a absurda obsessão que alguns têm por fazer uso dela para imitar a realidade. O cinema reserva certas particularidades – certo músculo do rosto, uma tensão de movimentos, a profundidade de um olhar – que nenhum artifício pode reproduzir. Como atração de feira de novidades, ‘A Lenda de Beowulf’ até poderia divertir, desde que estivesse municiada, para todos, com o sistema 3D, aquele dos óculos especiais. Assim como está, imagem plana, convencional, este interesse cai sensivelmente.