Se este ano o filme-surpresa incluído na competição do Festival de Veneza foi o fiasco japonês dirigido por Takeshi Kitano, em 2004 o título escolhido pela organização, outro asiático, acabou consagrado com o Leão de Prata para melhor direção e o prêmio de melhor filme de toda a mostra conferido pelo júri internacional de críticos da FIPRESCI a federação mundial da categoria, inclusive com o voto do enviado da Folha de Londrina.
Merecidos, sem dúvida. Porque ''A Casa Vazia'' (Binjip) é obra de um cineasta de rara sensibilidade no trato das relações humanas nas grandes metrópoles, alguém que trabalha o cinema acima de tudo privilegiando sua matéria-prima essencial: a imagem.
O jovem Tae-Suk é um desocupado nada convencional. Numa grande cidade (Seul? São Paulo? Tóquio?), quando encontra casas temporariamente desabitadas, com os donos em viagem, ele se instala utilizando astúcia, engenho e habilidade.
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Não rouba nada, não danifica nada. Como compensação por sua estada, lava a roupa da família ausente, faz pequenos consertos e ainda tenta de alguma forma se incluir física (e afetivamente) naquele contexto.
Um dia ele ocupa uma casa com um jardim com espaço para jogar golfe, mas é descoberto por Sunhwa, mulher constantemente maltratada pelo marido cruel e patético, alguém vivendo seu próprio inferno. Unidos por circunstâncias, os caminhos de Tae-Suk e Sunhwa tornam-se um só, a lidar juntos com os respectivos vazios existenciais.
Partindo desta premissa original e singular, o diretor Kim Ki-duk, depois de ''Primavera, Verão, Outono e... Primavera'', volta a surpreender com esta fábula sobre a solidão, e como a solidão pode desaparecer quando compartilhada. Uma história surrealista e mágica, na qual o que menos interessa é o que em realidade acontece ou não acontece.
Há, em ''A Casa Vazia'', um tipo de marginalidade essencialmente urbana, uma inadaptação social materializada num personagem solitário e sigiloso, alguém que não se comunica verbalmente em todo o filme. É ele, no entanto, o protagonista de uma história de amor romântica quase à beira do surreal, vivida com uma ex-modelo e agora mulher mal amada.
A originalidade de Kim Ki-duk está tanto em fundo como na forma. Partindo de um roteiro brilhante pela textura enxuta e objetiva, que ressalta o mutismo do casal e um acurado senso de humor, ''A Casa Vazia'' elege a imagem como trunfo maior da narrativa, devolvendo assim ao cinema sua função primeira e específica: a construção de uma dramaturgia pelo olhar do artista filtrado pela câmera, deixando a palavra em absoluto segundo plano.
Apenas há diálogos, e até estes poderiam ser suprimidos, porque se fala com uma câmera dotada de suficiente lirismo para captar sensações que identificam o drama interior dos personagens centrais. Aqui, o silêncio é entidade própria.
Neste sentido, o sul-coreano Ki-duk, 45 anos, já se revela um mestre na exposição sui-generis de uma visão de conturbado mundo contemporâneo, este mundo onde se busca o intangível através da intuição de que não estamos sós o aparentemente enigmático jogo de gato e rato entre Tae-Suk e seu carcereiro é muito eloquente neste sentido.
''A Casa Vazia'', dotado desta esplêndida sensibilidade oriental que a partir de agora estará mais próxima de nós, é rico em conteúdos e profundo em sua análise da sociedade moderna. O filme somente pede ao espectador, além da atenção, uma cumplicidade e uma interação a fim de se usufruir seu lirismo e suas reflexões.