Estreias

'21 Gramas' exibe na tela a balança do destino

09 jan 2004 às 09:18

Confesso que me aproximei de ''21 Gramas'', no encerramento da mostra competitiva do ultimo Festival de Veneza, com um misto de expectativa e receio. A pergunta que não queria calar era se o mexicano Alejandro González Iñárritu seria capaz de criar um segundo longa-metragem com o mesmo impacto de ''Amores Perros'', com aquele mesmo atrevimento, aquela mesma entrega ao novo, ao experimental, ao lúdico.

E recordar a frustração com o Tarantino pós ''Pulp Fiction'' só fez aumentar a dúvida, quase angústia. Outro sobressalto foi saber que o diretor tinha se transportado com armas e bagagens para os Estados Unidos, deixando para trás o México e aquela estimulante estrutura crua e libertária da estréia. E então veio o alívio, seguido de fascínio e quase exaltação.


''21 Gramas'' convence, sobretudo, pela harmoniosa integração entre argumento, personagens e a estética da narrativa. Vale dizer: uma feliz colaboração entre o roteirista Guillermo Arriaga, o diretor Iñárritu, o diretor de fotografia Rodrigo Prieto de resto o tripé vitorioso de ''Amores Perros'' e naturalmente o elenco. Mas não apenas.


O diretor admite e incentiva aqui uma participação tão importante quanto as outras, justamente o espectador cúmplice. Portanto, vá ao cinema preparado para se converter em co-participante da construção do filme. E ver (ou rever) ''Amores Perros'' não é pré-requisito, mas pode facilitar este processo.


É impossível resumir a história em sinopse que não pareça ridícula a quem não conhece o filme. ''Paciente recebe coração transplantado, procura viúva do doador e se apaixona por ela'' com certeza teria a cara de dramaturgia barata em telenovela das oito. Embora seja exatamente isto o que acontece, não corresponde exatamente ao que ocorre no filme. A indicação dramática de que o relato se arma em torno de um acidente automobilístico nos remeteria a ''Amores Perros'', e também não faria justiça ao filme.


''21 Gramas'' não é uma sequela ou um autoplágio da obra de estréia do diretor, mas tão somente a prova de que o autor é fiel aos temas e ao estilo que o interessam, sem importar que sejam abordados no México ou em outros países. Não me parece que ''21 Gramas'' seja menos ''mexicano'' que ''Amores Perros'', apesar de ser uma produção americana. Repetindo: aqui o que interessa a Iñárritu é o melodrama e a busca de novas formas narrativas para a observação da condição e das alterações do destino do ser humano.


Três pessoas, três atores na plenitude. Paul (Sean Penn, com indicação assegurada para o Oscar, ou por aqui ou por ''Sobre Meninos e Lobos''), professor doente à espera de um coração; Jack (Benicio Del Toro), ex-presidiário tentando refazer a vida através da descoberta da fé religiosa; e Christina (Naomi Watts), às voltas com drogas e lutando para se firmar como mulher, mãe e irmã. Um trágico acidente desconstrói ainda mais essas existências. Para o espectador os primeiros minutos do filme são particularmente estressantes porque a narrativa se alterna entre personagens, tempos e espaços.


Em pouco tempo se percebe que a história se compõe não apenas por vidas cruzadas, mas também de momentos biográficos, condições e estados diferentes dos personagens envolvidos. Isto poderia se transformar em quebra-cabeça difícil de armar, mas o filme leva habilmente o espectador de situação em situação, possibilitando um trabalho de construção espaço-temporal extremamente interessante, ainda que dolorosa.


Não há duvida de que ''21 Gramas'' demonstra que a percepção da realidade é feita de pequenos fragmentos, que a memória é seletiva e que, enquanto se pode morrer em um instante, por outro lado viver demanda muito trabalho. Sobretudo se ao dia-a-dia vem acoplada uma carga de solidão, culpa ou ressentimento, nem sempre suportável.

As 21 gramas que uma pessoa perde ao morrer o dado é pseudo-científico, aqui utilizado como licença filosófica provocam toneladas de sentimentos e grandes mudanças na vida daqueles mais próximos que ficam. Poucos filmes, nos últimos tempos, foram tão originais ao falar sobre perda, condicionamento, amor, culpa, coincidência, vingança, dever, fé, esperança, toda essa matéria prima dos impasses existenciais que constituem o léxico da sobrevivência nossa de cada dia.


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