Toda noite, quando põe a cabeça no travesseiro, as cenas de animais sob as águas de enchentes voltam à mente de Luisa Mell. Com duas costelas quebradas, a ativista, que até dias atrás estava em um barquinho tentando ajudar nos resgates de animais no Rio Grande do Sul, agora fica deitada a maior parte do dia para se recuperar do baque.
"Minha equipe está lá. Eles nadam, pulam muro, escalam telhado... Estou sendo bem representada. No meio desse caos todo, toda noite tenho pesadelos com animais se afogando", diz ela em bate-papo com a Folha de S.Paulo.
Segundo Luisa, nos dias que permaneceu no RS, presenciou cenas "devastadoras". "Nunca tinha me deparado com tantos animais mortos. E quantos outros ainda vão morrer?", lamenta ela, que afirma que pretende organizar eventos de adoção de alguns dos bichos resgatados.
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Não bastassem todas as dificuldades pelas quais passou, como o salvamento de uma égua que durou sete horas, a ativista afirma ainda que há lugares onde o voluntariado não conseguiu entrar, pois seriam dominados por facções criminosas. Confira abaixo trechos da entrevista:
PERGUNTA - Como estava sendo sua rotina em meio às enchentes no RS?
LUISA MEL - Acordamos cedo, tomamos café, possivelmente a única refeição do dia, e vamos para a água. A nossa equipe entrava no barco, passava o dia todo nele resgatando bichos, voltava, deixava nos abrigos e com equipe de apoio e retornava para a água. Essa rotina dura até 18h30, até escurecer. Eu era folgada e queria ficar mais tempo, mas depois entendi que fica perigoso.
P. - Onde se hospedaram?
LM - No início estávamos hospedados num hotel bem longe, em Campo Bom, ficava a mais de uma hora do local dos resgates. Chegávamos exaustos. E 5h da manhã já tínhamos de retornar no dia seguinte. Então, comecei a procurar hotéis mais perto, mas todos estavam lotados. Foi então que uma seguidora ofereceu a casa dela, em Gravataí. Conseguimos ter mais condições, pois senão o corpo não iria aguentar.
P. - Quais foram os resgates mais complexos e impressionantes que você e sua equipe fizeram?
LM - O resgate de uma égua foi difícil e durou sete horas. Só acabou perto das 19h. Ela tinha água até o pescoço havia quatro dias, estava desidratada, fraca, morrendo de frio. Contratei dois especialistas para nos ajudar, mas foi desafiador, pois não sabíamos o que tinha embaixo da água. Nunca rezei tanto. Também resgatei três cachorros em que tive de subir no barco, me pendurar em varanda e um muro que quase caiu. Talvez tenha sido em um desses momentos que fraturei as duas costelas.
P. - Quando começou a sentir dor, o que pensou?
LM - Não queria parar de jeito nenhum, continuei, mas toda hora sentia dor. Achei que pudesse aguentar, mas não consegui e tive de retornar a São Paulo para ir ao hospital. Fiquei com vontade de trazer vários animais para casa. Além dos resgates, há cenas dramáticas. A situação dos abrigos é triste, porque eles não estavam preparados para tudo isso, estão superlotados, animais amarrados, pois brigam uns com os outros.
P. - Pretende retornar ao Rio Grande do Sul?
LM - Agora estou em São Paulo e proibida [pelo médico] de voltar. Fico deitada o tempo todo e, daqui, oriento minha equipe que ficou lá. Eles nadam, pulam muro, escalam telhado e estou sendo bem representada. Não tem recompensa igual a salvar um bichinho. No meio desse caos todo, toda noite tenho pesadelos com animais se afogando.
P. - Tem ideia de quantos bichos você e sua equipe resgataram?
LM - Não sei, talvez uns 50. Alguns deles fomos com os tutores para tentar recuperar e, quando conseguíamos, era uma felicidade.
P. - Mas, quando não, o cenário era devastador. Vi cada cena, nunca tinha me deparado com tantos animais mortos. E quantos outros ainda vão morrer?
LM - É um momento como se fosse uma guerra.
P. - O que é mais difícil em resgate?
LM - Tem lugares onde voluntários não conseguem entrar, pois há facções criminosas dominando. E, nessas áreas, temos centenas de animais morrendo. Se não for feito nada, teremos surto de doenças.
P. - O que te motiva a fazer esse trabalho?
LM - Estou na causa animal há 22 anos e fico muito emocionada com o que meu trabalho virou hoje. Quando comecei a fazer resgates, eu era ridicularizada, as pessoas riam porque toda hora eu chorava com o que via. Hoje, muita gente aplaude.
P. - O que pensa sobre os haters?
LM - Hater não tem escapatória. Se não fizer nada para esquecerem de você, vão reclamar. Quando faz, também criticam. É como se você sempre estivesse devendo algo. Fui para o RS com recursos próprios, fiz um monte de resgates mesmo com dor e as pessoas reclamam. Nunca tive tantos roxos no corpo. Teve quem tenha duvidado que quebrei costelas, que inventei isso. Falam que eu choro demais. Mas quem não se emociona com esse horror já morreu, perdeu a humanidade ou é psicopata.
P. - O que mais chamava a sua atenção em meio a tudo isso?
LM - É tudo horrível. Gente perdendo a vida, ver a tristeza das pessoas. Parecia que todos os sonhos haviam sido destruídos. É devastador sob todas as camadas. De repente, você não tem mais nada e precisa morar com outras 6.000 pessoas que não conhece. É um negócio horroroso.
P. - Pretende promover algum evento para adoção de cães?
LM - Sim, já estou organizando. O primeiro será dia 25 no shopping Iguatemi em Florianópolis. Estamos selecionando animais para levar. Se aparecer o dono até dois meses, a política é devolver. As demais feiras serão em São Paulo e Minas Gerais. Precisamos tirar esses animais de lá, mas com responsabilidade.